terça-feira, 10 de março de 2009

INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO

INTRODUÇÃO AO ESTUDO DO DIREITO

Apesar de se referir a conceitos científicos, a Introdução não é, em si, uma ciência, mas um sistema de idéias gerais estruturado para atender a finalidades pedagógicas. Considerando a sua condição de matéria do curso jurídico, deve ser entendida como disciplina autônoma, pois desempenha função exclusiva, que não se confunde com a de qualquer outra. Sob este enfoque Luiz Luisi reconhece a autonomia, que "deriva de seu fim específico: reduzir o Direito a unidade sistemática". Se tomarmos, porém, a palavra disciplina no sentido de ciência juridica, devemos afirmar que a Introdução ao Estudo do Direito não possui autonomia; ela não cria o saber, apenas recolhe das disciplinas jurídicas (Filosofia do Direito, Ciência do Direito, Sociologia Jurídica, História do Direito, Direito Comparado) as informações necessárias para compor o quadro de conhecimentos a ser descortinado aos acadêmicos. A cada instante, na fundamentação dos elementos da vida jurídica, recorre aos conceitos filosóficos, sociológicos e históricos, sem chegar, porém, a se confundir com a Filosofia do Direito, nem com a Sociologia do Direito, que são disciplinas autônomas. De caráter descritivo e pedagógico, não "consiste na elaboração científica do mundo jurídico", como pretende Werner Goldschmidt, pois o conteúdo que desenvolve não é de domínio próprio. O que possui de específico é a sistematização dos conhecimentos gerais. Em semelhante equívoco incorre Bustamante y Montoro, que reconhece na disciplina uma índole normativa".Embora de caráter descritivo, a disciplina deve estar atenta ao dogmatismo puro, que tolhe o raciocínio e a reflexão. O tratamento exageradamente crítico aos temas é também inconveniente, de um lado porque torna a matéria de estudo mais complexa e de difícil entendimento para os iniciantes e, de outro lado, porque configura o objeto da Filosofia do Direito. A disciplina Introdução ao Estudo do Direito visa a fornecer ao iniciante uma visão global do Direito, que não pode ser obtida através do estudo isolado dos diferentes ramos da árvore jurídica. As indagações de caráter geral comuns às diversas áreas são abordadas e analisadas nesta disciplina. Os conceitos gerais, como o de Direito, fato jurídico, relação jurídica, lei, justiça, segurança jurídica, por serem aplicáveis a todos os ramos do Direito, fazem parte do objeto de estudo da Introdução. Os conceitos especificos, como o de crime, mar territorial, ato de comércio, desapropriação, aviso prévio, fogem à finalidade da disciplina, porque são particulares de determinados ramos, em cujas disciplinas deverão ser estudados. Para proporcionar a visão global do Direito, a Introdução examina o objeto de estudo dos principais ramos do Direito, levando os alunos a se familiarizarem com, a linguagem jurídica. O estudo que desenvolve não versa sobre o teor das normas jurídicas; não se ocupa em definir o que se acha conforme ou não à lei, pois é disciplina de natureza epistemológica, que expressa uma teoria da ciência juridica. Concluindo, podemos dizer que ela possui um tríplice objeto:
a) os conceitos gerais do Direito;
b) a visão de conjunto do Direito;
c) os lineamentos da técnica jurídica.

Outros Sistemas de Idéias Gerais do Direito

Filosofia do Direito - A Filosofia do Direito é uma reflexão sobre o Direito e seus postulados, com o objetivo de formular o conceito do justiça e de analisar as instituições jurídicas no plano do dever, levando-se em consideração a condição humana, a realidade objetiva e os valores de justiça e segurança. Pela profundidade de suas investigações e natural complexidade, os estudos filosóficos do Direito requerem um conhecimento anterior tanto de filosofia quanto de Direito. Uma certa maturidade no saber jurídico é indispensável a quem pretende estudar a ciência anterior do Direito. Este aspecto já evidencia a impossibilidade de essa disciplina figurar nos currículos de Direito como matéria propedêutica. A importância de seu estudo é patente, mas a sua presença nos cursos jurídicos há de se fazer em um período mais avançado, quando os estudantes já se familiarizaram com os príncipios gerais de Direito.

Teoria Geral do Direito - Como forma de reação ao caráter abstrato e metafísico da Filosofia Jurídica, surgiu a Teoria Geral do Direito que, de índole positivista e adotando subsídios da Lógica, é disciplina formal que apresenta conceitos úteis à compreensão de todos os ramos do Direito. A sua atenção não se acha voltada para os valores e fatos que integram a norma jurídica e por isso a sua tarefa não é a de descrever o conteúdo de leis ou formular a sua crítica. Seu objeto consiste na análise e conceituação dos elementos estruturais e permanentes do Direito, como presuposto e a disposição da norma jurídica, coação, relação juridica, fato juridico, fontes formais. Na expressão de Haesaert, a Teoria Geral do Direito "concerne ao estudo das condições intrínsecas do fenônemo jurídico". Esta ordem de estudo é valiosa ao aprendizado jurídico, contudo carece de importantes unidades que versam sobre os fundamentos, valores e conteúdo fático do Direito. Daí por que essa disciplina, que constitui uma grande seção de estudo da Introdução, é insuficiente para revelar aos iniciantes da Jurisprudentia as várias dimensões do fenômeno jurídico. A Teoria Geral do Direito surgiu no século XIX e alcançou o seu maiordesenvolvimento na Alemanha, onde foi denominada Allgemeine Rechtslehre. Seus principais representantes foram Adolf Merkel, Berbohm, Bierling, Binding e Felix Somló.

Sociologia do Direito - O estudo das relações entre a sociedade e o Direito, desenvolvido em ampla extensão pela Sociologia do Direito, é um dos temas necessários a uma disciplina introdutória. Esta, porém, não pode ter o seu conteúdo limitado ao problema da efetividade do Direito, nem empreender aquela pesquisa em profundidade, a nível de especialização. A Sociologia do Direito não oferece a visão global do Direito, não estuda os elementos estruturais e constitutivos deste, nem cogita do problema de sua fundamentação. Além desta série de lacunas, acresce ainda o fato de que o objeto da Sociologia do Direito não está inteiramente definido e seus principais cultores procuram formar, entre si, um consenso a este respeito.

Enciclopédia Juridica - A etimologia do vocábulo enciclopédia dá uma visão do que a presente disciplina pretende objetivar: encyclios paidêia correspondia a um conjunto variado de conhecimentos indispensáveis à formação cultural do cidadão grego. A Enciclopédia Jurídica tem por objeto a formulação da síntese de um determinado sistema jurídico, mediante a apresentação de conceitos, ciassificações, esquemas, acompanhados de uma numerosa terminologia. Sem conteúdo próprio, de vez que procura resumir as conclusões da Ciência do Direito, o que caracteriza a Enciclopédia Jurídica é o seu método de exposição dos assuntos, ao dividí-los em títulos, categorias, rúbricas, e a sua tentativa de reduzfr o saber jurídico a fórmulas e esquemas lógicos. Na prática a Enciclopédia Jurídica não se revelou uma disciplina pedagógica, porque conduz à memorização, tornando o seu estudo cansativo e sem atingir às finalidades de um sistema de idéias gerais do Direito. Estendendo o seu estudo aos conceitos específicos, peculiares a determinados ramos da árvore jurídica, a Enciclopédia Jurídica não evita a dispersão cultural. Querer enfaixar, por outro lado, todo o panorama da vida jurídica em uma disciplina é pretensão utópica e sem validade científica. Como obras mais antigas no gênero, citam-se a de Guilherme Duramti, de 1275, denominada Speculum Juris, preparada para ser utilizada pelos causídicos perante os tribunais; a Methodica Juris Utriusque Traditio, de Lagus, em 1543; o Syntagma Juris Universi, de Gregório de Tolosa, de 1617 e a Encyclopoedia Juris Universi, de Hunnius, em 1638. A Enciclopedia Giuridica, de Filomusi Guelfi, do final do século XIX, revela a multiplicidade dos temas abordados na disciplina. Além de uma parte introdutória e uma geral, onde desenvolve, respectivamente, sobre o conceito do Direito e suas relações com a Moral e aborda o tema da origem do Direito Positivo e o problema das fontes formais, a obra do notável mestre italiano apresenta uma parte especial, a mais extensa, dedicada aos institutos jurídicos fundamentais, tanto de Direito Público como de Direito Privado. Nesta parte, o autor faz incursões demoradas em todos os ramos do Direito, analisando o sistemajurídico italiano. Não obstante o seu grande valor, essa obra não deve ser catalogada como propedêu-tica, porque não se limita a analisar os conceitos gerais do Direito.
DIREITO E MORAL

A teoria dos circulos secantes - Para Du Pasquier, a representação geométrica da relação entre os dois sistemas não seria a dos cfrculos concêntricos, mas a dos círculos secantes. Assim, Direito e Moral possuiriam uma faixa de competência comum e, ao mesmo tempo, uma área particular independente. De fato, há um grande número de questões sociais que se incluem, ao mesmo tempo, nos dois setores. A assistência material que os filhos devem prestar aos pais necessitados é matéria regulada pelo Direito e com assento na Mural. Há assuntos da alçada exclusiva da Moral, como a atitude de gratidão a um benfeitor. De igual modo, há problemas jurídicos estranhos à ordem moral, como, por exemplo, a divisão da competência entre um Tribunal de Alçada e um Tribunal de Justiça.

A visão kelseniana - Ao desvincular o Direito da Moral, Hans Kelsen concebeu os dois sistemas como esferas independentes. Para o famoso cientista do Direito, a norma é o único elemento essencial ao Direito, cuja validade não depende de conteúdos morais.

A teoria do "minimo ético" - Desenvolvida por Jellinek, a teoria do mínimo ético consiste na idéia de que o Direito representa o mínimo de preceitos morais necessários ao bem-estar da coletividade. Para o jurista alemão toda sociedade converte em Direito os axiomas morais estritamente essenciais à garantia e preservação de suas instituições. A prevalecer essa concepção o Direito estaria implantado, por inteiro, nos domínios da Moral, configurando, assim, a hipótese dos circulos concêntricos. Empregamos a expressão minimo ético para indicar que o Direito deve conter apenas o mínimo de conteúdo moral, indispensável ao equilíbrio das forças sociais, em oposição ao pensamento do máximo ético, exposto por Schmoller. Se o Direito não tem por finalidade o aperfeiçoamento do homem, mas a segurança social, não deve ser uma cópia do amplo campo da Moral; não deve preocupar-se em trasladar para os códigos todo o continente ético. Diante da vastidão do território jurídico, não se pode dizer que o mínimo ético não seja expressivo. Basta que se consulte o Código Penal para certificar-se de que o mencionado bem estar da coletividade exije uma complexidade normativa. A não-adoção dessa teoria, assim interpretada, implicaria a acolhida do máximo ético, pelo qual o Direito deveria ampliar a sua missão, para reger, de uma forma direta e mais penetrante, a problemática social.'

O Direito e as Regras de Trato Social

Conceito das Regras de Trato Social - Se o homem observasse apenas os preceitos jurídicos, o relacionamento humano, como já vimos, se tornaria mais difícil, mais áspero e por isso menos agradável. A própria experiência foi indicando certas regras distintas do Direito, da Moral e da Religião, que desempenham a função de amortecedores do convívio social. São as Regras de Trato Social, chamadas também Convencionalismos Sociais e Uso Sociais.' Recaséns Siches condena estas duas últimas denominações. O termo convencionalismo, para ele, traz a idéia de convenção, o que não corresponde à realidade dessas regras, enquanto que a expressão Usos Sociais é imprópria, pois, em sua generalidade, atinge tanto aos usos não jurídicos quanto aos jurídicos.' Para designar esse tipo de regras, os alemães empregam o vocábulo Sitte, e os franceses a palavra moeur. As Regras de Trato Social são padrões de conduta social, elaboradas pela sociedade e que, não resguardando os interesses de segurança do homem, visam a tornar o ambiente social mais ameno, sob pressão da própria sociedade. São as regras de cortesia, etiqueta, protocolo, cerimonial, moda, linguagem, educação, decoro, companheirismo, amizade etc. Entre as questões doutrinárias que as Regras de Trato Social suscitam apresenta-se uma ordem de indagações axiológicas: Qual o valor ou valores que esse campo normativo realiza? Essas normas possuem algum valor exclusivo ? Enquanto os demais instrumentos de controle social possuem um valor próprio, bem definido, essas regras exigem um estudo mais apurado, para se descobrir, na multiplicidade de suas espécies, uma unidade de propósito. Para facilitar a nossa tarefa, adotamos, inicialmente, o método da exclusão. Os assuntos pertinentes à segurança, sendo exclusivos do Direito, não podem participar dos objetivos dessas regras. Por outro lado, somente a Moral e a Religião procuram o aperfeiçoamento do homem. Se colocarmos entre parênteses o valor segurança e os referentes ao aperfeiçoamento espiritual do homem, atentando para o fato de que são regras que orientam o cómportamento interindividual, projeta-se o campo de normatividade das Regras de Trato Social e singulariza-se o seu valor. A faixa de atuação das Regras incide nas maneiras de o homem se apresentar perante o seu semelhante, e o seu valor consiste no aprimoramento do nível das relações sociais. O papel das Regras de Trato Social é o de propiciar um ambiente de efetivo bem-estar aos membros da coletividade, favorecendo os processos de interação social, tornando agradáveis a convivência, mais amenas as disputas, possibilitando o diálogo. As Regras de Trato Social, em conclusão, cultivam um valor próprio, que é o de aprimorar o nível das relações sociais, dando-lhes o polimento necessário à compreensão. Esse valor, contudo, não é de natureza independente, mas complementar. Pressupõe a atuação dos valores fundamentais do Direito e da Moral. O valor que as Regras de Trato Social traduzem constitui uma sobrecapa dos valores éticos de convivência.

Alguns Aspectos Históricos - Na época em que os diferentes instrumentos de controle social ainda se mantinham indiferenciados, era comum o legislador disciplinar os mais simples fatos do trato social. Assim é que, em Esparta, conforme relato de Fustel de Coulanges, o penteado feminino era previsto em lei; as mulheres, em Atenas, não podiam levar consigo mais de três vestidos em viagem; enquanto a lei espartana proibia o uso do bigode, a de Rodes impedia que se fizesse a barba. A lei das Doze Tábuas, conforme Cícero narra em De Legibus, prova a intromissão do legislador em assuntos reservados, hoje, ao exclusivo campo das Regras de Trato Social: "que as mulheres não pintem as sobrancelhas nem façam queixume lúgubre nos funerais". Uma outra lei romana determinou que os elogios ao morto só poderiam ser feitos nas exéquias públicas e por intermédio de orador oficial, limitado também o número de assistentes nos funerais, a fim de que a tristeza e a lamentação não fossem maiores. A deusa Themis não estendia o seu manto apenas sobre as normas do Direito. Hirzel, citado por R. Siches, destaca o fato de que a deusa era a personificação do bom conselho para todos os assuntos da vida, significando, ao mesmo tempo, o símbolo da atividade do chefe da família patriarcal, que não distinguia os conteúdos do Direito, Moral, Religião e Regras de Trato Social. Dike, uma espécie de filha de Themis, mais tarde, era a deusa ligada apenas à decisão judicial. Léon Duguit, conforme lembra Bustamante y Montoro, viu um denominador comum em toda essa rede de normas que governa a vida em sociedade. Era a norma da solidariedade, assim expressa: "não fazer nada que atente contra a solidariedade social, em qualquer de suas formas, e fazer tudo que conduza a realizar e a desenvolver a solidariedade social mecânica e orgânica". Caracteres das Regras de Trato Social - Entre os caracteres principais das Regras de Trato Social, apresentam-se:
a) aspecto social;
b) exterioridade;
c) unilateralidade;
d) heteronomia;
e) incoercibilidade;
f) sanção difusa;
g) isonomia por classes e niveis de cultura.

Aspecto social - Como a própria denominação induz, as regras possuem um significado social. Constituem sempre maneira de se apresentar perante o outro. O indivíduo isolado não se subordina a esses preceitos. Ninguém é cortês consigo próprio. Se a sua finalidade é o aperfeiçoamento do convívio social, é natural que essas regras atinjam apenas a dimensão social dos homens.

Exterioridade - Via de regra essas normas visam apenas à superficialidade, às aparências, ao exterior. Assim, por exemplo, são as normas de etiqueta, cerimonial, cortesia. Quando se deseja bom dia a alguém, cumpre-se um dever social, que não requer intencionalidade. O querer do indivíduo não é necessário. Há algumas normas, todavia, como as de amizade e companheirismo, em que se exige além das aparências. Um gesto de consideração não espontâneo, desprovido
de vontade própria, não possui significado nas relações de amizade.

Unilateralidade - A cada regra correspondem deveres e nenhuma exigibilidade. As relações sociais, fundadas nessas regras, não apresentam um titular capacitado a reclamar o cumprimento de uma obrigação. As Regras de Trato Social são unilaterais porque possuem estrutura imperativa: impõem deveres e não atribuem poderes de exigir.

Heteronomia -Os procedimentos, os padrões de conduta não nascem na consciência de cada indivíduo. A sociedade cria essas regras de forma espontânea, natural e, por considerá-las úteis ao bem estar, passa a impor o seu cumprimento. O caráter heterônomo dessas regras decorre do fato de que obrigam os indivíduos independentemente de suas vontades. A cada um compete apenas a adaptação de atitudes de acordo com os preceitos instituídos.

Incoercibilidade - Por serem unilaterais e não sofrerem a intervenção do Estado, essas regras não são impostas coercitivamente. O mecanismo de constrangimento não é dotado do elemento força, para induzir à obediência. A partir do momento em que o Estado assume o controle de alguns desses preceitos, estes perdem o caráter de Trato Social e se transmutam em Direito. Quando a lei estabelece a indumentária dos militares, as normas que definem os unifomes e o seu uso não são Regras de Trato Social, mas se acham incorporadas ao mundo do Direito.

Sanção difusa - A sanção que as Regras de Trato Social oferecem é difusa, incerta e consiste na reprovação, na censura, crítica, rompimento de relações sociais e até expulsão do grupo. O indivíduo que nega uma ajuda a seu amigo, por exemplo, viola os preceitos de companheirismo. A sanção será a reprovação, o enfraquecimento da amizade ou até mesmo o seu rompimento. A apresentação em sociedade com traje inadequado provoca naturalmente a crítica. O constrangimento que as regras impõem é, muitas vezes, mais poderoso do que a própria coação do Direito. O duelo, hoje em desuso, é um exemplo. Durante muito tempo existiu apenas como convenção social contra alguem. O indivíduo preferia romper com a lei a fugir da praxe social.

Insonomia por classes e niveis de cultara - As obrigações que as Regras de Trato Social irradiam não se destinam, de igual modo, aos membros da sociedade. O seu caráter impositivo varia em função da classe social e nível de cultura. Assim, não se espera de um simples trabalhador o trajar elegante, de acordo com a moda. Um juiz, porém, que se apresente socialmente com as vestes de um andarilho provoca estranheza e reprovação. De um matuto do interior admite-se o linguajar incorreto, mas de indivíduo que possui escolaridade, a pronúncia errônea ou a concordância incorreta conduz à crítica.

Natureza das Regras de Trato Social - Uma outra questão levantada na doutrina refere-se à natureza das Regras de Trato Social. Constituem um tertium genus, ao lado do Direito e da Moral? Ou, bem examinadas, se vinculam a um ou a outro compartimento ético?

Corrente negativista - Entre os autores que contestam a especificidade das Regras de Trato Social, como principais nomes destacam-se: Del Vecchio e Gustav Radbruch. Para o jusfilósofo italiano, as normas de conduta social ou pertencem ao campo do Direito ou ao setor da Moral. Ou as normas são imperativas, característica da Moral, ou são imperativo-atributivas, peculiaridade do Direito. Em sua maior parte, tais normas são "subespécies da Moral". Em sua opinião, há certas regras que não revelam imediatamente a sua natureza, mas, submetidas a rigoroso estudo, revelam-se portadoras apenas de deveres, sendo, assim, imperativos morais; ou apresentam uma estrutura imperativo-atributiva, hipótese em que se identifcam como preceitos jurídicos. Para Gustav Radbruch, os preceitos ordenadores da conduta social se bipartem, igualmente, entre os setores do Direito e da Moral. O ponto de partida de seu raciocínio consiste na afirmação de que os processos culturais visam a realização de um valor específico. Assim o Direito se estrutura em função da justiça; a Moral procura alcançar o bem e a Religião persegue a divindade. As Regras de Trato Social , em sua concepção, não visam a um valor específico ou exclusivo, não constituindo, assim, processo normativo de natureza própria.

Corrente positiva - Para Rudolf Stammler: a distinção entre os dois processos culturais, Direito e Convencionalismos Sociais , baseia-se nos diversos graus de pretensão de efetividade. Enquanto o Direito é imposto coercitivamente, os convencionalismos são apenas orientações para o comportamento social, que se acompanham apenas de uma pressão psicológica, sem contar com o elemento força. Negou a possibilidade de uma diferenciação com base na matéria das Regras de Trato Social, pois é comum um determinado conteúdo deslocar-se de uma espécie para outra. A etiologia das normas, para ele, não pode igualmente servir de critério, pois tanto o Direito como as Regras vêm da população e nascer de uma forma reflexiva ou da prática consuetudinária. Felix Somló estabeleceu, como critério diferenciador, a origem dos preceitos. Enquanto as normas jurídicas seriam criações estatais, os Convencionalismos Sociais emanariam da própria sociedade. Este critério é falho, de vez que o Direito costumeiro não da uma criação estatal.

Conclusão - No tópico relativo ao conceito das Regras de Trato Social, deixamos clara a nossa opinião acerca da natureza própria, singular, desse processo normativo. Reconhecemos também que essas normas buscam um valor particular, que é o aprimoramento das relações sociais. Quanto às argumentações expendidas pelos diversos autores, julgamos impossível a distinção com base apenas em um ou outro critério. Concordamos com Stammler quando exclui a possibilidade da distinção com apoio na origem das normas ou em relação ao seu conteúdo. Acompanhamos ainda o jusfilósofo alemão no que se refere à coercibilidade como nota exclusiva do Direito. Não admitimos, contudo, a sua pretensão em erigir este critério como o único e definitivo meio de chegar ao conceito das Regras de Trato Social. Este é alcançado pelo exame de caracteres, enquanto que a sua distinção dos demais instrumentos de controle social é atingida pelo confronto geral dos traços peculiares de cada um, assinalado no quadro que se segue.
Conceito e Importância da Hermenêutica Jurídica

A palavra hermenêutica provém do grego, Hermeneúein, interpretar, e deriva de Hermes, deus da mitologia grega, filho de Zeus e de aia, considerado o intérprete da vontade divina. Habitando a Terra, era um deus próximo à Humanidade, o melhor amigo dos homens.' Todo conhecimento humano, de acordo com F. Gény, desdobra-se em dois aspectos: os princípios e as aplicações. Os princípios provêm da ciência e as aplicações, da arte. No mundo do Direito, hermenêutica e interpretação constituem um dos muitos exemplos de relacionamento entre princípios e aplicações. Enquanlo quea hermenêutica é teórica e visa a estabelecer princípios, critérios, métodos, orientação geral, a interpretãção é de cunho prático, aplicando os ensinamentos da hermenêutica. Não se confundem, pois, os dois conceitos apesar de ser muito freqüénté o emprego indiscriminado de um e de outro. A interpretação aproveita os subsídios da hermenêutica. Esta, conforme salienta Maximiliano, descobre e fixa os princípios que regem a interpretação. A hermenêutica estuda e sistematiza os critérios aplicáveis na interpretação das regras jurídicas. O magistrado não pode julgar um processo sem antes interpretar as normas reguladoras da questão. Além de conhecer os fatos, precisa conhecer o Direito, para revelar o sentido e o alcance das normas aplicáveis. O empresário, na gestão de seus negócios, não pode descurar do conhecimento do Direito. Orientado por seus assessores, descobre, em cada nova lei, a verdadeira mensagem do legislador. Também o cidadão necessita conhecer o Direito, para bem cumprir as suas obrigações e reivindicar os seus direitos. Para que o Direito conquiste a sociedade, fazendo desta o seu reino, é mister que apresente expressões claras e inteligíveis, a fim de que. os indivíduos tomem conhecimento de suas normas e as acatem, preservando-se, assim, o seu domínio, que importa no triunfo da ordem, segurança e justiça. A efetividade do Direito depende, de um lado, do técnico que formula as leis, decretos e códigos e, de outro lado, da qualidade da interpretação realizada pelo aplicador das normas. Da simplicidade, clareza e concisão do Direito escrito, vai depender a boa interpretação, aquela que oferece uma diretriz segura, que orienta quanto às normas a serem vividas no plexo social, nos retónos e onde mais o Direito é considerado. O êxito da interpretação de um bom trabalho de técnica legislativa. O mensageiro-legislador, além de analisar os fatos sociais e equacioná-los mediante modelos de comportamento social, deve exteriorizar as regras mediante uma estrutura que, além de clara e objetiva, seja harmônica e coerente. A tarefa do intérprete é menos complexa quando os textos são bem elaborados. Se considerarmos, ainda, que a hermenêutica fornece princípios para a os negócios juridicos, contratos, testamentos e outras modalidades,vamos ter uma visão maior do significado e importância que representa para o mundo do Direito. Para a formação do intérprete é exigível, além do conhecimento técnico específico, uma gama de condições pessoais; que deve ornar a sua personalidade e cultura. Quanto aos dotes de personalidade, sobressaem-se os de probidade, serenidade, equilíbrio e diligência. A probidade é a honestidade de propósitos, é a fidelidade do intérprete às suas convicções, operando sem deixar-se levar por ondas de interesses. O cérebro do intérprete deve atuar livre, sem condicionamentos extra legem, para atingir o seu objetivo. A serenidade corresponde à tranqüilidade espiritual, sem s qual não pode haver produção intelectual, pois o contrário - paixão - obscurece o espírito. O equilibrio é a qualidade que garante a fìrmeza e coerência. O intérprete precisa ser diligente, não se acomodando diante das dificuldades de sua tarefa. Deve desenvolver todos os esforços, recorrer a todos os meios disponíveis, no sentido de revelar as expressões do Direito. Deve explorar todos os elementos de que dispõe, para dar cumprimento à sua tarefa. Além destas qualidades, deve possuir curiosidade cientifica, interesse sempre renovado em conhecer os problemas jurídicos e os fenômenos sociais. Deve estar em permanente vigília, atento à evolução o Direito e dos fatos sociais. Deve ser um pesquisador, pois ninguém conhece o suficiente, em termos de pretensão científica. Não se deve amarrar definitivamente a velhas concepções. O intérprete deve ter o espírito sempre aberto, preparado para ceder diante de novas evidências. O conhecimento do Direito é essencial, bem como o da organização social, com seus problemas e características.

Conceito de Interpretação em Geral

A palavra interpretação possui amplo alcance, não se limitando à Dogmática Jurídica. Interpretar é o ato de explicar o sentido de alguma coisa; é revelar o significado de alguma expresão verbal, artistica ou constituida por um objeto, atititude ou gesto. A interpretação consiste na busca do verdadeiro sentido das coisas e para isto o espírito humano lança mão de diversos recursos, analisa os elementos, utiliza-se de conhecimentos da lógica, psicologia e, muitas vezes, de conceitos técnicos, a fim de penetrar no âmago das coisas e identificar a mensagem contida. Todo objeto cultural, sendo obra humana, está impregnado de significados, que impõem interpretação. A primeira observação em um quadro de pintura moderna geralmente não é suficiente para descobrirse a mensagem de seu autor. Parece um amontoado desconexo de traços figuras. A nossa maior atenção, contudo, leva-nos a dissipar a primeira impressão, e aquilo qug era confuso já revela o seu significado. O trabalho do intérprete é o de decodificar e, para isto, percorre inversamente o caminho seguirlo pelo codificador. Diante de uma chapa radiográfica o médico faz observações, analisa imagens, levanta dúvidas, para, ao fim de tudo, conhecer problema, o trabalho que desenvolve é o de interpretar. Em todos os momentos da vida, a interpretação é indispensável. Pode-se afirmar que todo conhecimento pressupõe a interpretação que, às vezes, opera no plano da consciência para revelar ao próprio indivíduo o significado da emoção ou o alcance de um sentimento.

A Vontade do Legislador e a "Mens Legis"

l. O Sentido da Lei - Há questões capitais na hermenêutica jurídica, que exigem opção doutrinária do intérprete e entre elas destaca-se a indagação sobre o sentido da lei: o intérprete deve pesquisar a vontade do legislador ou o pensamento da lei? O estudo da presente questão, conforme esclarece Paulo Dourado de Gusmão, deu origem aos chamados métodos de interpretação. Na Antigüidade, quando predominava o pensamento teológico, a lei era a vontade dos deuses. As leis, que possuíam valor sacramental, eram consideradas imutáveis, porque sendo obra divina somente poderiam ser reformuladas por quem as fizera. Criava-se um forte impasse:
o imobilismo da lei e a dinâmica dos fatos sociais. A solução que os antigos encontravam era a de fraudar a letra da lei, mediante artifícios. Legaz y Lacambra considera bizantina toda essa distinção que envolve as teorias subjetiva e objetiva, a primeira que se preocupa com a vontade do legisládor e a segunda, com a vontade da lei, simplesmente porque não admite pesquisa de vontade. Diz o notável jusfilósofo espanhol que, por vontade, só poderia cogitar a do legislador, porque a lei não possui vontade e que é preciso romper o mito da mens legislatoris, pois "o que o legislador quis não o sabemos, senão através da lei, ou melhor, através de todo o sistema da ordemjurídica.'

2. A Teoria Subjetiva - Alguns autores anotam, como origem da teoria subjetiva; a chamada Escola da Exegese, que floresceu na França, logo após o advento do Código Napoleão. A pesquisa sobre os critérios adotados pelos glosadores, ao longo dos séculos XII e XIII, nos revela que o trabalho desenvolvido por esses juristas foi culto permanente à vontade do legislador. Ao levarem a cabo a interpretação do Direito Romano, contido no Corpus Juris Civüis, os glosadores limitavam-se ao texto. A promulgação da legislação napoleônica, no início do séc. XIX, trouxe profundas alterações no mundo do Direito, notadamente na hermenêuticajurídica. O Código Civil da França alcançou rapidamente prestígio mundial, sendo considerado uma obra perfeita pelos juristas da época. A Humanidade, no dizer de Villoro Toranzo, estava diante de um mundo novo, "o mundo da razão, da liberdade e do progresso e esse mundo estava todo elejá traçado nos artigos do Código, como se fossem as linhas de um plano arquitetônico"." A atitude assumida pelosjuristas franceses, ao considerarem Direito Positivo apenas o Código Napoleão e entenderem que o Código não possuía lacunas, originou a formação da Escola da Exegese. Esta crença na infalibilidade do Código Civil, que satisfazia, segundo os juristas da época, a todas as necessidades da vida social, desde que o intérprete examinasse o seu conteúdo e tirasse as conclusões lógicas, gerou a necessidade de reconstrução do pensamento do legislador. A técnica de revelação da vontade do legislador exigia que o intérprete examinasse bem o valor semântico de todas as palavras, comparando o texto a ser interpretado com outros, para evitar os conflitos e contradições. Pelos subsídios da gramática o intérprete vai descobrir o pensamento do legislador, que deve ser acatado incondicionalmente, qualquer que seja o resultado da interpretação, ainda que iníquo e absurdo. A lógica formal será utilizada de acordo com os elementos obtidos no texto, sem dele afastar-se. Contudo, admite-se a pesquisa dos elementos históricos, na medida em que esclareça a intenção do legislador. Permite-se ainda ao intérprete recorrer às obras doutrinárias que serviram de base ao legislador."

3. A Teoria Objetiva - Superada a fase do codicismo, da exagerada valorização do Código, começou o processo de aperfeiçoamento da teoria da interpretação. A teoria subjetiva foi submetida a uma análise crítica, da qual não logrou êxito. Gradativamente a doutrina foi sendo abandonada em favor da teoria objetiva, que leva o intérprete a pesquisar a vontade da lei. Foi a Escola Histórica, com a concepção evolutiva do Direito, quem mais concorreu, ao ver de Hermes Lima, para se construir a moderna teoria da intepretação. Savigny e outros adeptos dessa Escola chamavam a atenção para a importância do pensamento social na formação do Direito, bem como o caráter evolutivo deste. A lei não seria produto de uma só vontade, mas resultado do querer social. O legislador não cria a lei em seu intelecto, apropria-se das fórmulas que a organização social sugere, para transfundi-las nos textos. No dizer de Maximiliano, "o indivíduo que legisla é mais ator do que autor, traduz apenas o pensar e o sentir alheios, reflexamente, às vezes, usando meios inadequados de expressão quase sempre". A teoria subjetiva, subordinando o intérprete ao pensamento do legislador, impedia os processos de aperfeiçoamento da ordem jurídica, que são possíveis apenas mediante o permanente trabalho de adaptação dos textos legislativos às exigências hodiernas. A teoria objetiva não determina o abandono dos planos do legislador. A liberdade concedida ao intérprete tem como limite os princípios contidos no texto. Despreza a mens legislatoris em favor do sentido objetivo dos textos jurídicos, que têm significado próprio, implícito em suas expressões. Quando o legislador elabora um texto normativo, não pode pressentir a infinidade de situações que serão alcançados no futuro, pela abstratividade da lei. A pesquisa da intencionalidade do legislador conduziria o aplicador do Direito fatalmente a um subjetivismo indesejável. A teoria subjetiva encontra ainda outro grande obstáculo na dificuldade que se teria, nos regimes democráticos, de se apurar a vontade do legislador. Nos totalitários seria menos difícil a tarefa, pois a lei seria a expressão da vontade individual do chefe de governo. Qual a vontade do legislador, quando a lei é elaborada por um congresso, no qual participam e votam centenas de parlamentares? Como se unificar a vontade heterogênea de centenas de congressistas? Ao intérprete moderno incumbe, conforme conclui Carlos Maximiliano, "determinar o sentido objetivo do texto, a vis ac potestas legis; deve ele olhar menos para o passado do que para o presente, adaptar a norma à finalidade humana, sem inquirir da vontade inspiradora da elaboração primitiva".

A Interpretação do Direito quanto ao Resultado

1 . Interpretação Declarativa - Nem sempre o legislador bem se utiliza dos vocábulos, ao compor os atos legislativos. Muitas vezes se expressa mal, utilizando com impropriedade os termos. Quando dosa as palavras com adequação aos significados que deseja imprimir na lei, falamos que a interpretação é declarativa. O intérprete chega à constatação de que as palavras expressam, com medida exata, o espírito da lei.

2. Interpretação Restritiva - Quando ocorre, porém, que o legislador é infeliz ao redigir o ato normativo, dizendo mais do que queria dizer, a interpretação é restritiva, pois o intérprete elimina a amplitude das palavras. Exemplo: a lei diz des'cendente, quando na realidade queria dizer filho.

3. Interpretação Extensiva - É a hipótese contrária à anterior. O intérprete constata que o legislador utilizou-se com impropriedade dos termos, dizendo menos do qcce qcceria afcrmar. Ocorrendo tal hipótese, o intérprete alargará o campo de incidência da norma, em relação aos seus termos.

A Interpretação dos Negócios Jurídicos

O campo de estudo da hermenêutica jurídica alcança também os negócios jurídicos, como os contratos, testamentos etc. Contudo, como observa Pontes de Miranda, os princípios exegéticos aplicáveis às leis não aproveitam os negócios jurídicos e vice-versa. Para Pontes de Miranda, interpretar negócio jurídico é revelar quais os elementos do suporte fático que entrarão no mundo jurídico e quais os efeitos que, em virtude disso, produzem. Destaca alguns critérios a serem observados no momento da interpretação do negócio jurídico.

1º) Princípio de Integração: é indispensável a interpretação sistemática do conteúdo integral do negócio jurídico. O intérprete deverá examinar cada parte do conjunto em conexão com as demais;
2º) Princípio da Fixação Genêrica: na apuração do real sentido do negócio jurídico, não se deve levar em consideração "ao que é pessoal a cada figurante, ou ao destinatário". O intérprete deverá fixar-se primeiramente no texto, examinando os elementos gramaticais e depois a lei pertinente à matéria, podenúo, inclusive, se for necessário, recorrer aos usos;

3º) Princípio da Classifificação Técnica: com apoio no conhecimento fornecido pela doutrina e pela lei, o intérprete classifica o negócio jurídico, a fim de determinar-Ihe as conseqüências jurídicas." Na interpretação dos contratos, destacam-se as chamadas teoria objetiva ou da declaração e a teoria subjetiva ou da vontade. Ao considerar que o contrato faz lei entre as partes, a teoria objetiva preconiza, consoante expõe Miguel Reale, a interpretação objetiva, analogamente ao processo de interpretação da lei, pelo qual não se leva em conta o pensamento do legislador. Os adeptos desta teoria distinguem a vontade psicológica da vontade jurídica. Enquanto que a primeira é impossível de ser reconstituída, recorrem à segunda, pela qual deve prevalecer tão somente as construções gramaticais, sem qualquer remissão à intencionalidade. Para a teoria subjetiva ou da vontade o intéprete é orientado no sentido de descnbrir a intenção das partes. A interpretação literal é condenada e a subordinação do intérprete ao conteúdo semântico dos vocábulos é condicionada à plena adequação das palavras do elemento volitivo. A confirmar a tese de que o Direito muitas vezes abandona a sua característica de exterioridade, pela pesquisa do elemento vontade, o legislador brasileiro, seguindo a melhor doutrina, pelo art. 85 do Código Civil consagrou a teoria subjetiva ao preceituar: "Nas declarações de vontade se atenderá mais a sua intenção que ao sentido literal da linguagem." Condicionado pela expressão "atender mais a sua intenção", contida no artigo supracitado, Carvalho Santos entende que o nosso sistema ficou entre as duas teorias, adotando uma concepção eclética.' O equívoco é patente. Ao se consagrar a teoria subjetiva, dá-se preeminência ao elemento vontade em relação ao gramatical. Se a adoção da teoria subjetiva implicasse o abandono total da linguagem,teria fundamento a opinião do eminente jurista.
RAMOS DO DIREITO PÚBLICO

Considerações Prévias

A presente unidade, que versa sobre os ramos do Direito, objetiva proporcionar ao estudante a visão universal da árvore jurídica. Seu intento não é o de abordar conceitos e temas fundamentais de cada ramo, mas o de oferecer a perspectiva de estudo das diversas disciplinas especiais. A discriminação dos ramos não se fará exaustiva ou total. Vamos limitar a nossa apreciaçãó apenas aos ramos tradicionais, aqueles que formam disciplinas integrantes dos currículos de cursos. O ordenamento jurídico é um conjunto harmônico de regras que não impõe, por si, qualquer divisão em seu campo normativo. A setorização em classes e ramos é obra de iniciativa da Ciência do Direito ou Dogmática Jurídica, na deliberação de organizar o Direito Positivo, para fazê-lo prático ao conhecimento, às investigações científicas, à metodologia do ensino e ao aperfeiçoamento das instituições jurídicas. Sublinhamos, novamente, a necessidade de se considerar todo ramo do Direito como espécie de um gênero comum. Antes de ser adjetivo, pciblico, privado, penal, civil, o conjunto de normas expressa o substantivo Direito. Assim, cada ramo do Direito Positivo, além de possuir caracteres próprios, participa das propriedades inerentes à árvore jurídica: processo de adaptação social; normas coercitivas sob o comando do Estado; sujeição à variação histórica e submissão aos principios do Direito Natural; fórmula da realização dos valores segurança e justiça. O critério adotado na classificação dos ramos jurídicos é o da antiga divisão do Direito Público e Privado que, apesar de sua reconhecida deficiência, revela duas tendências fundamentais no estudo da Jurisprudência.

Direito Constitucional

A palavra constituição é um termo equívoco, porque possui várias acepções inteiramente distintas. Em sentido amplo, significa estrutura e, sob esse aspecto, todo ser apresenta uma constituição: homem, livro, automóvel. No campo jurídico o vocábulo é empregado em sentido material e formal. Do ponto de vista material, constituição representa a organização dos poderes e órgãos do Estado, bem como as normas protetoras das pessoas. Sob o aspecto formal, constituição significa o documento legal que define a estrutura estatal. Como a existência de um Estado pressupõe organização interna, todos possuem, necessariamente, uma constituição do ponto de vista material. Nem todos, porém, apresentam uma constituição formal, como é o caso da Inglaterra, que a possui consuetudinária.

Direito Constitucional: é o ramo do Direito Público que dispõe , sobre a estrutura do Estado, define a fiinção de secis órgãos e estabelece as garantias fundnmentais da pessoa. É um direito que limita a ação do governo, pois estabelece faixas de competência para os poderes. É também um direito de garantia das pessoas, pois as constituições modernas estabelecem um elenco de garantias fundamentais aos seres humanos. Denomina-se parte orgânicá da constituição a que dispõe sobre a estrutura do Estado e parte dogmática a que se refere aos direitos e garantias individuais. Em nossa Constituição, esta parte se acha inserida no art. Sa e seus setenta e sete itens. A ciência do Direito Constitucional começou a formar-se com os estudos promovidos por Montesquieu, ao desenvolver a clássica divisão dos poderes. A consolidação dessa ciência, como saber autônomo e sistemático, ocorreu ao final do século XVIII, com a promulgação das primeiras constituições: a norte-americana, em 1787; as constituições francesas de 1791,1793 e 1795, além da famosa "Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão", na França, em 1789. A importância das constituições decorre também de sua superioridade hierárquica em relação às leis ordinárias. As constituições fixam os princípios e as grandes coordenadas da vida jurídica do Estado e o legislador ordinário desenvolve essas regras gerais, através dos códigos e legislação extravagante. Enquanto que o termo constituição é aplicado ao documento votado pelos representantes do povo, o vocábulo carta designa a Lei Maior que é outorgada pelo governo. Pelo fato de a constituição expressar o sistema político do Estado e definir a proteção básica do cidadão, ela constitui uma importante fonte de conhecimentos quanto à filosofia política e social do povo, não obstante a possibilidade de ocorrer ofenômento das constituições que Ángel Latorre denomina de semânticas, "cujas normas têm pouca ou nenhuma relação com a realidade política do país em que em teoria regem, sendo essa circunstância deliberadamente desejada pelo legislador".

Direito Administrativo

A função do Estado é a de promover o bem-estar da coletividade. Para alcançar o seu objetivo deve apresentar, em primeiro lugar, uma estrutura definida de poder, que é uma atribuição do Direito Constitucional e, em segundo lugar, desenvolver a prestação de serviços públicos, cujo estudo compete à Dogmática Administrativa. O pensamento central desse ramo é o conceito de serviço público, que é a atividade estatal dirigida à satisfação das necessidades coletivas de ordem fundamental, como o fornecimento de energia elétrica, correio, abastecimento de água, transportes, obras públicas, segurança etc. Em que medida e dentro de que limites deve ser prestado esse serviço, é algo que diz respeito à filosofia política de cada Estado e sobre isto há várias correntes doutrinárias. As principais se reduzem a duas: a individualista, para quem o Estado deve intervir o mínimo possível no desenvolvimento social e limitar-se às atividades próprias do Estado-Guardião, e a coletivista ou socializante, que preconiza o Estado Providência, participante em todos os assuntos de relevância social. É o Direito Administrativo que estabelece a fórmulajurídica para a realização do serviço público, cujo conceito foi definido por Jèze como "toda organização de caráter permanente destinada a satisfazer as necessidades públicas de um modo regular e contínuo". Como a execução e o controle dos serviços públicos dependem do trabalho de funcionários qualificados, o Estado admite servidores de acordo com o que estabelecem as normas específicas, que se incluem no objeto do Direito Administrativo. Este ramo, na definição de Themístocles Brandão Cavalcanti, "é o conjunto de princípios e normas jurídicas que presidem ao funcionamento das atividades do Estado, à organização e ao funcionamento dos serviços públicos, e às relações da administração com os indivíduos". O Direito Administrativo não se confunde com a Ciência da Administração, que estuda os modelos teóricos relativos à gestão dos interesses coletivos. Esta Ciência, que se ocupa com a política e a técnica da administração, oferece importantes subsídios ao Direito Administrativo, que é modelo concreto de administração da coisa pública. A Dogmática Administrativa, que hoje é um ramo autônomo, destacou-se do Direito Constitucional a partir do início do século XIX. Seus princípios básicos surgiram na França, com a organização dos serviços públicos, promovida por Napoleão Bonaparte... Considerado por alguns como o Direito do futuro, bem se pode afirmar que o Administrativo é o Direito do presente, tal a sua penetração na vida social e os seus reflexos nos diversos ramos jurídicos. É um Direito que se desenvolve amplamente e que, por ser um campo demasiadamente vasto e carecer ainda de estabilidade, não se acha totalmente codificado. Em nosso País, a codificação das normas administrativas se faz de forma progressiva e por partes. Assim é que possuímos códigos de Água, Caça, Pesca, Florestal, Minas, Contabilidade Pública, Estatuto dos Funcionários Públicos etc.

Direito Financeiro

Direito Financeiro é o ramo do Direito Público que disciplina a receita e a despesa pública. Para realizar os serviços públicos, o Estado necessita de recursos financeiros, que são obtidos mediante a cobrança de impostos, contribuições, taxas, bem como por sua atividade empresarial. O movimento de arrecadação do dinheiro público e o seu emprego em obras e despesas gerais constituem o objeto do Direito Financeiro. Nessa disciplina são estudados os tributos, crédito, Direito Financeiro Penal, despesa pública. Apesar de as expressões Direito Tributário e Direito Fiscal serem empregadas, muitas vezes, como equivalentes ao Direito Financeiro, constituem apenas uma parte desse ramo referente às contribuições. Enquanto para a Escola Francesa o aspecto mais importante do Direito Financeiro é o que se refere à obtenção dos meios, para a Escola Alemã fundamental é a parte relativa à despesa pública. Tais preferências não apresentam um fundamento lógico, de vez que as duas tarefas são etapas necessárias e indispensáveis de um mesmo processo. Apesar de alguns juristas, como Bompani, considerarem o Direito Financeiro um simples apêndice do Direito Administrativo, a generalidade dos autores reconhece a sua autonomia. Até o início do atual século, a Dogmática Financeira não apresentava princípios próprios e seus estudos localizavam-se nos compêndios de Direito Constitucional, Direito Administrativo e Ciência das Finanças. A doutrina jurídica, que serviu de base ao surgimento do Direito Financeiro como ramo autônomo, foi a desenvolvida, primeiramente, pelo austríaco Myrbach Rhinfield (1909) e pelo alemão Enno Becker. Foram decisivos também os estudos apresentados, mais tarde, pelos italianos Pugliese, Grizzioti, Ingroso, Jarach e pelos franceses Trotabas e Hebrard. Em nosso País, até à metade do atual século, o Direito Financeiro era considerado um campo anexo da Ciência das Finanças. Atualmente, porém, apresenta um grande desenvolvimento e suas normas fundamentais acham-se inseridas no Código Tributário Nacional, de 1966.

Direito Internacional Público

O Direito Internacional Público é o ramo juridico que disciplias relações entre os Estados soberanos e os organismos análogos. . . suas principais fontes formais são os tratados e os çostumes internacionais. A sua existência pressupõe as chamadas bases sociológicas:
a)pluralidade de Estados soberanos, pois se houvesse apenas um Estado o Estado Mundial, não haveria dualidade de interesses e, conseqüentemente, não se justificariam quaisquer normas que não fossem as internas;
b) comércio internacional, pois a grande mas de interesses apresenta conteúdo econômico e envolve a troca riquezas;
c) principios juridicos coincidentes, de vez que, inexistindo valores comuns, faltariam os critérios de entendimento.
Originalmente esse ramo jurídico recebeu a denominação Direito das Gentes, adotada pelo espanhol Francisco Suárez (154 1617) e pelo holandês Hugo Grocio (1583-1645). Em Roma e a expressão foi empregada em sentido diverso, pois se referia às normas que regulavam as relàções jurídicas dos estrangeiros. A denominação proposta por Suárez foi aceita e generalizou-se entre os povos de diferentes línguas: droit des gens; law of nations; elerecho de gentc diritto delle genti. Apesar dessa denominação ser mantida na Alemanha, Võlkerrecht, modernamente foi substituída pelo nome Direito Internacional, de uso corrente nos diversos idiomas: droit international; international law; diritto internazionale. Essa expressão, contudo tem sido criticada por alguns autores por se referir ao conceito de nação que é de ordem sociológica e não jurídica. Sugerem, esses juristas a substituição pelo termo interestatal. A teorização do Direito Internacional foi encetada pela Escola Espanhola do Direito das Gentes, constituída, entre outros nomes, por Francisco Vitória, Soto, Molina, Francisco Suárez, que defendera nos séculos XVI e XVil, a existência de uma comunidade internacional, fundada na independência e igualdade de direito entre os Estados. Foi importante também a contribuição de Hugo Grócio, considerado por muitos o "pai do Direito Internacional". Foi esse jurista que formulou a divisão do objeto do Direito Internacional em guerra e paz, em sua obra intitulada De Jure Belli ac Pacis ( 1625). Tal critério ainda perdura, sendo incluída a parte relativa ao Direito de neutralidade nos estudos sobre a guerra. O Direito Internacional, que é também Direito Positivo, apresenta várias semelhanças com o Direito interno, conforme discriminação feita pelo internacionalista Celso D. de Albuquerque Mello:
a) é uma ordem normativa;
b) é dotado de sanção;
c) tem idêntica noção de ato ilícito, isto é, que ele consiste na violação de uma norma.
Na opinião de Luis Legaz y Lacambra, o Direito Intèrnacional apresenta todos os supostos essenciais da juridicidade:
a) há um ponto de vista sobre a justiça a realizar;
b) há uma pluralidade de sujeitos de direito;
c) há uma recíproca correlação de licitude;
d) há uma forma de viver social que se cristaliza em um conjunto de normas jurídicas.
Não obstante os elementos comuns existentes entre o Direito Internacional e o Direito interno, alguns autores discutem a existência desse ramo do direito e alguns chegam até a negar o caráter jurídico das normas internacionais. Questionam, entre outros aspectos, os seguintes:1 o) A impossibilidade de um Estado, em face de sua soberania, subordinar-se a qualquer ordenamento que não seja ditado por ele próprio; 2o) A ausência de um poder legislativo; 3o) A falta de uma jurisdição internacional; 4o) A falta de sanção. Tais argumentos encontram resposta imediata: o Direito Internacional não subordina os Estados a um poder estranho, mas ao império das normas jurídicas e o conceito atual de soberania não é incompatível com a submissão à ordem jurídica; assim como no Direito interno há uma criação espontânea do Direito, o consuetudinário, que não requer a intervenção ou comando do Estado, na ordem internacional é possível também a produção normativa independentemente de um poder superior ao Estado; a aludida falta de umajurisdição internacional compromete apenas, e em parte, a efetividade do Direito e não a sua validade, o que, dito em outras palavras, quer dizer que não se deve confundir o "ser" do Direito com o "dever-ser"; apesar de deficiente, existe a sanção internacional, sob diferentes modalidades: represália, boicote, bloqueio pacífico, guerra etc. Quanto à relação entre o Direito Internacional e o Direito interno , a doutrina apresenta duas grandes correntes: a dualista e a monista. Para a primeira corrente, os dois direitos constituem sistemas inteiramente independentes, que estão entre si como dois círculos tangentes. Para o monismo; ao contrário, os dois direitos se integram num sistema único. Nesse ponto, bifurcam-se as opiniões. Para a linha hegeliana, no ordenamento jurídico único, a predominância é do Direito interno sobre o Direito Internacional, em face do caráter absoluto da soberania e, para a outra corrente, na qual se destacam os adeptos da Escola de Viena (Kelsen, Verdross, Kunz e outros), a norma internacional ocupa uma posição superior ao Direito interno, que lhe deve submissão. Como síntese das correntes dualista e monista, surgiram as chamadas teorias conciliadoras, que admitem a existência de dois sistemasjurídicos com uma subordinação parcial. Alguns Estados reconhecem expressamente a obrigatoriedade interna das normas internacionais. Na Inglaterra existe o príncipio de que "o Direito Internacional é parte do Direito da Inglaterra" e na Alemanha o art. 25 de sua Constituição Federal determina: "As regras gerais do Direito Internacional são parte do Direito federal. Tém primazia sobre as leis e produzem direitos e obrigações imediatas para os habitantes do território federal." Os organismos internacionais, que zelam pelo aperfeiçoamento e eficácia do Direito Internacional, são, entre outros, a Organização das Nações Unidas (ONU), criada em 1945; a Organização dos Estados Americanos (OEA), de 1948; a Corte Internacional de Justiça, sediada em Haia.

Direito Internacional Privado

O Direito Internacional Privado, na definição de Agenor Pereira de Andrade, "é o conjunto de normas que têm por objetivo solucionar os conflitos de leis entre ordenamentos jurídicos diversos, no plano internacional, indicando a lei competente a ser aplicada". Quando estudamos a eficácia da lei no espaço já entramos em contato com o principal objeto desse ramo. Não obstante a prevalência da opinião de que se trata de um ramo do Direito Privado, entendemos, juntamente com Miguel Reale e Paulo Dourado de Gusmão, que a sua natureza é de Direito Público. Pelos elementos que a definição acima oferece, verifica-se que esse ramo, apesar de produzir efeitos sobre os particulares, não cria modelos de conduta intersubjetiva, pois limita-se a indicar o sistema jurídico a ser aplicado às relações sociais, o nacional ou o estrangeiro. As suas normas são de caráter covergente ou taxativo, pois as partes interessadas não podem alterar os seus efeitos. A denominação desse ramo tem sido criticada por diversos autores, quanto aos três vocábulos que a compõem. Para alguns, não chega a ser Direito, sendo apenas um conjunto de princípios ou normas técnicas que resolvem conflitos de leis. Na opinião de outros juristas, não possui caráter internacional, pois é regulado internamente pelos próprios Estados para ser aplicado em seus territórios. A expressão é criticada ainda em razão do termo privado, pois muitos consideram esse ramo como sendo de Direito Público. Outras denominações têm sido apresentadas: Direito Intersistemático, Direito Civil Internacional, Direito Privado Universal dos Estrangeiros, Direito dos Limites, Conflito de Leis. Quanto ao objeto da disciplina, não há uniformidade de pensamento entre os juristas. Para a Escola Francesa, o Direito Internacional Privado regula:
a) o contlito de leis no espaço;
b) os aspectos jurídicos
da nacionalidade;
c) a situação jurídica do estrangeiro.
Alguns autores, como Haroldo Valadão e Amílcar de Castro, estendem o objeto de estudo do Direito Internacional Privado à solução de conflitos entre ordenamentos jurídicos de um mesmo Estado. As opiniões divergem também quanto à inclusão dos conflitos de leis de natureza penal, administrativa, processual e fiscal. Na opinião de Agenor Pereira de Andrade, não se pode aceitar a idéia "de que houvesse confrontos de leis no plano extemo que fugissem ao estudo da nossa disciplina, por se situarem nessa ou naquela partição do direito". Apesar de alguns autores negarem autonomia ao Direito Internacional Privado, ela é reconhecida de uma forma generalizada pelos cientistas do Direito. O fato de grande parte de suas normas localizarem-se; em nosso sistema, na Lei de Introdução ao Código Civil, é algo contingente e que não indica qualquer dependência ao ramo do Direito Civil. Em 1928, a Sexta Conferência Interamericana aprovou, em Havana, um Código de Direito Internacional Privado, cujo projeto foi elaborado pelo jurista cubano Antonio Sanchez de Bustamante. Esse diploma legal, que recebeu o nome de Código de Bustamante, foi ratificado pelo Brasil, através do Decreto Legislativo no 5.467, de 7 de janeiro de 1929.

Direito Penal

Direito Penal é o ramo do Direito Público que define os crimes, e estabelece as penalidades correspondentes e dispõe sobre as medidas de segurança. Na definição de Mezger "é o conjunto de normas jurídicas que regulam o poder punitivo do Estado, ligando ao delito, como pressuposto, a pena como conseqüência"."'Além da denominação Direito Penal, a mais divulgada atualmente, esse ramo é também designado por Direito Criminal. Enquanto que a primeira denominação faz referência à conseqüência jurídica a que está sujeito o autor do crime, a segunda se refexe ao conceito nuclear do ramo, que é o crime. Alguns autores criticam a expressão Direito Penal; por não abranger uma parte , importante desse ramo, que são as medidas de segurança. Outros nomes foram sugeridos:
Direito Repressivo (Puglia);
Direito Restaurador ou Sancionador (Valdés);
Direito de Defesa Social (Martinez);
Direito Protetor dos Criminosos (Dorado Montero) etc.
Antes de atingir a atual fase, em que o titular dos jus puniendi é o Estado, o Direito Penal passou por diversas etapas:
a) vingança privada;
b) composição voluntária;
c) composição legal;
d) repressão do Estado. Primitivamente, a vítima ou seus familiares reagiam à lesão do direito, pela própria força. Na fase da composição voluntária a vítima entrava em acordo com o criminoso e trocava o seu perdão por uma compensação econômica. Posteriormente, esse critério de composição, instituído naturalmente pelas partes, foi adotado pelas legislações, que impunham ao infrator um pagamento à vítima. Finalmente, no período de humanização do direito, para o qual César Beccaria (1738-1794) contribuiu decisivamente, com a sua obra Dei Delitti e delle Pene, o Estado detém o monopólio do direito de punir e o faz mediante critérios científtcos que objetivam, de um lado, a intimidação e, de outro, a readaptação social do criminoso. A Moral, que exerce grande influência em toda a árvore jurídica, manifesta-se de uma forma mais intensa no ramo penal. Ao defmir as infrações, a Dogmática Penal lida com o minimo ético, ou seja, com os princípios morais mais relevantes e essenciais ao bem-estar da coletividade. Por esse motivo o Código Penal é considerado, por alguns, como o código moral de um povo e o ilícito penal é referido, às vezes, como ilicito moral. Giulio Battaglini explica as razões: "enquanto que os demais ramos do Direito a Moral é, antes de mais nada, critério de valoração (com exceção da instituição do matrimônio que, no Direito Civil, é regulada por leis de ética natural), no Direito Penal o conteúdo material do preceito se constitui principalmente de normas morais (direito natural)." Quanto às infrações penais, os sistemas jurídicos apresentam dois critérios básicos. Alguns países, como a Alemanha, França e Bélgica, adotam uma divisão tricotômica: crime, delito e contravenção, cujos conceitos se distinguem apenas sob o aspecto de gravidade do ilícito. Nesse sistema, o delito é infração mais grave do que a contravenção e mais leve do que o crime. Em outros países, como o nosso, adota-se apenas uma divisão dicotômica: crime ou delito e contravenção. Não há uma distinção ontológica entre crime e contravenção. O critério é o quantitativo. Daí Nélson Hungria ter apelidado a contravenção por "crime anão". A distinção maior é quanto às penas e o seu cumprimento. O ponto maior de convergência da Dogmática Penal reside no conceito de crime e seus elementos constitutivos. Costuma ser definido como ação humana, típica, antijuridica e culpável.
A) Ação Humana: somente o homem possui responsabilidade criminal. As pessoasjurídicas não podem ser sujeito ativo do crime. A responsabilidade criminal é apenas a de seus dirigentes. Nem os irracionais, como se admitia outrora, são imputáveis. Os requisitos básicos para a responsabilidade penal são: idade mínima de dezoito anos e discernimento.
B) Típica: a tipicidade consiste no fato de a ação praticada enquadrar-se em um modelo de crime definido em lei. Prevalece, no Direito Penal, o principio de estrita legalidade: nullum crimen, nulla poena, sine lege (não há crime e nem há pena sem lei). Este é um princípio de vital importância para a segurança jurídica dos indivíduos. Como decorrência lógica, não se admite a analogia em matéria penal para efeito de enquadramento da conduta em tipos de crime e fixação de penas. Discute-se a respeito da aplicação da chamada analogia in bonam partem que favorece ao acusado. Rocco, Bettiol, Delitala e outros admitem-na, enquanto que Nélson Hungria, Von Hippel, Asúa e outros a ela se opõem.
C) Antijuridica: a ação praticada é contrária ao Direito. O antijurídico penal pressupõe sempre a tipicidade.
D) Culpabilidade: é o elemento subjetivo da ação. Para haver crime é necessário que o agente da ação tenha agido intencionalmente ou com imprudência, negligência ou imperícia. Chama-se crime doloso o praticado com deliberação e vontade; culposo, quando não desejando conscientemente o resultado da ação, o agente não o impede. Em matéria penal, portanto, não há qualquer aplicação da teoria objetiva da responsabilidade ou da responsabilidade sem culpa. Questiona-se quanto à inclusão da punibilidade no conceito de crime. O penalista italiano Giulio Battaglini defendeu a inclusão, mas prevalece, contudo, a opinião contrária, e o argumento mais forte foi apresentado por Sauer, ao afirmar que o crime é o pressuposto da pena, ou seja, esta é o efeito jurídico da prática do crime.

Direito Processual

Direito Processual é o ramo juridico que define os principios e normas que dispõem sobre os atos judiciais tendentes à aplicação do Direito aos casos concretos. Esse ramo surgiu apenas em uma fase de maior desenvolvimento científico do Direito. Nos tempos primitivos a solução jurídica dos conflitos interindividuais era uma tarefa dos particulares. O poder público não assumia o encargo de resolver os litígios. Quando alguém se julgava lesado em seu direito, tomava a iniciativa de obter a reparação do dano sofrido, mediante expediente próprio. Era o sistema de autodefesa. Modernamente a tarefa dejulgar e aplicar a lei aos casos concretos é monopólio do Estado e só excepcionalmente se admite o desforço pessoal (legítima defesa). Para o cumprimento de seu dever de resolver as questões jurídicas manifestas, o Estado moderno dispõe de um poder próprio, o Judiciário, especificamente estruturado para desenvolver a atividade jurisdicional. A função que exerce é da máxima importância para a segurança jurídica dos indivíduos. A efetividade do Direito não depende apenas de leis aperfeiçoadas que indiquem os modelos de comportamento social. É indispensável, çomplementarmente, um sistema eficiente de regras que organizem a prestaçãojurisdicional, para que o Poder Judiciário, com independência, critério científico e a celeridade desejada, julgue os pedidos que lhe são dirigidos. O Direito Processual, também denominado Direito Judiciário , é caracterizado como um Direito adjetivo ou fórmal, como meio de distinção do que regula diretamente os fatos sociais, caracterizado como Direito substantivo ou material. A alusão ao Direito Processual como Direito adjetivo é criticada por alguns autores, sob o fundamento de que o adjetivo modifica o`substantivo, fato esse que não ocorre na relação entre os dois campos normativos em referência. Historicamente as normas processuais surgiram no bojo das leis materiais, como apêndice. Atualmente, porém, o Direito Processual revela-se autônomo não apenas no ponto de vista científico e doutrinário, mas também no campo legislativo. Assim é que, ao lado do Código Civil e Comercial, há um Código de Processo Civil, que estabelece os procedimentos judiciais a serem observados quando as pretensões forem de natureza civil ou comercial. Igualmente, além do Código Penal, há o Código de Processo Penal, destinado a regular as ações criminais. Discute-se, doutrinariamente, se o Direito Processual pertence à classe do Direito Público ou Direito Privado. A opinião prevalente é a que o situa entre os ramos do Direito Público. Alguns autores, notadamente franceses, entendem que o processo civil pertence ao gênero do Direito Privado, enquanto que o processo penal, ao Direito Público. Alegam que no processõ civil as partes possuem ampla liberdade na prática dos atos judiciais e que os interesses em jogo são apenas particulares, enquanto que o processo criminal é inflexível, pois nem o juiz, nem as partes podem alterar o rumo da ação criminal. Ángel Latorre contesta a alegada dualidade de interesses: "A coletividade e a ordemjurídica, em seu conjunto, estão interessadas em que os conflitos entre particulares se resolvam com rapidez e justiça. A função judicial no âmbito do processo civil é também um exercício do poder público em prol da comunidade e não simplesmente um instrumento nas mãos dos particulares."
O objeto de estudo do Direito Processual centraliza-se em três aspectos fundamentais:
a) jurisdição;
b) ação;
c) processo.
Ajurisdição consiste no poder que os juizes e tribunais possuem de declarar o direito sobre as questões que lhe são submetidas. A palavra jurisdição é de origem latina lurisdictio, que significa dizer o direito. Divide-se em contenciosa e voluntária. A primeira se ocupa das questões litigiosas, enquanto que a segunda apresenta um caráter administrativo, sendo provocada quando o interessado deseja uma declaração ou autorização judicial. Para Calamandrei, apenas a contenciosa constitui efetivamente umajurisdição. O conceito de jurisdição não se confunde com o de competência. Esta é a medida da jurisdição, ou seja, é a aptidão do juiz para exercer sua jurisdição em caso determinado." O direito de ação consiste na faculdade, que o portador de um interesse econômico ou moral possui, de submeter uma pretensão, contra um sujeito de direito, à apreciação do Poder Judiciário, exigindo-lhe a prestação jurisdicional. É um direito autônomo, que não depende do suporte de um direito subjetivo. Processo é o conjunto de atos judiciais necessários à declaração do direito aos casos concretos.


RAMOS DO DIREITO PRIVADO

Direito Civil

Direito Civil é o conjunto de normas que regulam os interesses fundamentais do homem, pela simples condição de ente humano. É considerado a constituição do homem comum, por ser referir às principais etapas e valores da vida humana. Em face de sua grande generalidade, esse ramo apresenta alguma dificuldade para uma definição rigorosa, de acordo com os princípios da lógica. O seu gênero próximo, que é o Direito Privado, praticamente se confunde com o seu objeto, daí os autores, em boa parte, se encaminharem para as definições enumerativas do conteúdo. Sob o aspecto objetivo, Clóvis Beviláqua o define como "o complexo de normas jurídicas relativas às pessoas, na sua constituição geral e comum, nas suas relações recíprocas de família e em face dos bens considerados em seu valor de uso". Sob o aspecto subjetivo, considerou-o "o poder de ação que a ordem jurídica assegura à generalidade dos indivíduos". A denominação desse ramo é bem antiga e provém dos romanos (jus civile), que a empregavam, porém, em sentido muito amplo, como o estatuto jurídico aplicável aos cidadãos, em oposição ao jus gentium, que se destinava aos estrangeiros. Durante a Idade Média, sob a denominação Direito Civil, compreendia-se todo o Direito Positivo, com exceção ao Direito Canônico, que apresentava princípios e normas próprias. Somentè com as primeiras codificações, já ao final do século XVIII, foi que a Dogmática Civil se personalizou. Na Alemanha, por exemplo, até a promulgação do famoso B.G.B., o termo Direito Civil era equivalente ao Direito Privado. Em relação ao Direito Público, é considerado conservador, de vez que, tendo alcançado o estádio de amadurecimento científ co, pouco evoluiu. A sedimentação doutrinária do Direito Civil vem acumulando-se desde a época dos romanos aos dias atuais. É o ramo que tem experimentado, no dizer de Ángel Latorre, "a mais larga e refinada elaboração dòutrinal e o que proporciona o sistema de conceitos e o conjunto de aptidões mentais mais completas e perfiladas rio mundo do Direito". A Dogmática Civil é um Direito geral e comum, que se aplica supletivamente a outros ramos do Direito Privado, nos casos de lacunas. É também o Direito Privado por excelência. Dele se destacaram vários ramos, como o trabalhista, comercial, agrário, minas etc. O processo de desprendimento de disciplinas, ocorrente nesse ramo, é análogo ao que se passou no âmbito da Filosófia, que inicialmente abarcava todas as áreas de conhecimento mas que, lenta e progressivamente, foi perdendo o seu domínio e apresenta, hoje, um objeto de estudo bem mais limitado. Em relação ao Direito Civil, não se pode afirmar ainda que o processo de formação de novos sub-ramos tenha-se acabado e que o seu objeto atual represente o seu núcleo definitivo. A este respeito Clóvis Beviláqua externou a sua opinião afirmando que "até onde irá esse fenômeno de desenvolvimento crescente da matéria jurídica e formação de novos grupos autônomos é difícil dizer, mas sente-se que a energia não está esgotada". Por esse motivo costuma-se dizer que o Direito Civil possui um caráter residual. O objeto de estudo do Direito Civil apresenta dois setores distintos. Um deles se refere à matéria de interesse comum aos diversos ramos jurídicos e que abrange o estudo sobre as pessoa,s, bens e atos juridicos. O outro setor constitui propriamente a temática do Direito Civil e compreende as seguintes matérias: Familia, Obrigações, Coisas, Sucessões, que expressam os interesses fundamentais da pessoa. Àfamilia o homem se vincula pelos instintos vitais e afetivos. As regras de Direito não criam essas relações mas as reconhecem, protegendo-as. O Direito de família apresenta um conteúdo moral acentuado e nele se manifestam claramente os princípios do Direito Natural. O princípio da autonomia da vontade, que é amplamente utilizado no Direito Civil em geral, possui uma diminuta expressão no Direito de Família, sendo aplicável, somente em parte, quanto ao regime de bens no casamento, adoção, separação conjugal por mútuo consentimento. O Direito das Obrigações reflete também uma necessidade primária do homem, que é a de obter, mediante vínculos jurídicos, os meios necessários de sobrevivência. É pela força jurídica dos contratos que a homem compra os alimentos e utensílios indispensáveis, aluga uma casa, adquire um terreno. Esta parte do Direito Civil é comandada pelo aludido princípio da autonomia da vontade. O liberalismo jurídico não é absoluto, pois, na proteção da parte mais fraca e de acordo com o interesse social, o Direito estabelece limites à livre disposição da vontade. O Direito das Coisas diz respeito à propriedade de bens móveis e imóveis. A posse e o uso das coisas materiais são indispensáveis à satisfação das necessidades vitais do homem. O Direito das Sucessões, que disciplina a transmissão de bens mortis causa, é dominado pelo princípio da legitimidade da herança e do direito de testar.

Direito Comercial

1. A Patavra "Comércio" - De origem latina - comercium - o vocábulo é composto da preposição cum e do substantivo merx, significando comprar para vender. O emprego da palavra, contudo, costuma ser feito em três sentidos diferentes: geral, econômico e juridico. Em seu significado geral o vocábulo traduz a permuta de qualquer coisa, de sentimentos, de serviços e de relações. Dá ainda a idéia de comunicação física, moral e intelectual. Daí falar-se em comércio de amizades, de simpatia, de afeto. A palavra é empregada também na linguagem religiosa, conforme salientou Scaccia, "o celeste comércio de Deus com os homens".' No sentido econômico, o comércio é um agente da circulação das riquezas. No dizer de De Plácido e Silva, "é a instituição a que, como intermediária ou medianeira, se atribui a função de atender as necessidades do consumo público". É, portanto, trabalho de mediação. A venda direta do produtor ao consumidor não representa comércio em sentido econômico, malgrado caracterizar-se como troca. Em seu significado jurídico, comércio representa o conjunto de atos medianeiros, praticados com habitualidade e com o fito de lucro.

2. Definição de Direito Comercial-O Direito Comercial é o ramo do Direito Privado que rege os atos de comércio e disciplina o exercicio da profissão de com.erciante. Ato de comércio é o núcleo desse ramo jurídico. Em que consiste, porém? - São os atos de mediação habitual entre produtor e consumidor, com finalidade lucrativa. É o Direito do comerciante? - Não somente do comerciante. Há atos de comércio praticados por não-comerciantes, como é o caso de quem emite um cheque ou uma nota promissória. Estes são atos de comércio por força apenas de definição legal. O Direito Comercial é o Direito dos comerciantes e dos atos de comércio. Esta colocação, não obstante alguns inconvenientes, é, no entender de Fran Martins, a que fornece "uma idéia ampla e mais aproximada do âmbito do direito comercial".

3. Caracteres do Comércio-Os principais caracteres do comércio são os seguintes: mediação, habitualidade e lucro.

3.1. Mediação: o comércio é uma ponte entre o produtor e o consumidor. As riquezas produzidas são levadas, pelo profissional do comércio, de sua fonte de produção até o consumidor final.

3.2. Habitualidade: a habitualidade consiste na prática reiterada de mediação com o fito de lucro. Atos isolados de intervenção entre o produtor e o consumidor não são suficientes à caracterização do comércio, se bem que, em algumas profissões, pelo vulto da transação, pode o comerciante se satisfazer economicamente com poucas permutas.

3.3. Lucro: Finis mercatorum est lucrum - ou seja, o fim do comércio é o lucro. Este fator é importante, não chegando a constituir-se na nota essencial do comércio. Toda atividade que é desenvolvida como profissão, persegue sempre o interesse pecuniário. O lucro só é alcançado quando os rendimentos superam as despesas e os juros do capital empregado. O fito de lucro deve ser visto como qccasi stipendium laboris, ou seja, como a justa remuneração pelo trabalho realizado.

4. Os Fins do Direito Comercial - O Direito Comercial não regulamenta apenas os interesses jurídicos do comerciante, mas se estende também a grande parte das atividades fabris. O maior número de seus institutos disciplina igualmente matéria de interesse das indústrias. Os fins desse ramo, conforme Paulino Jacques enumera, são:
a) estudar os comerciantes e seus auxiliares;
b) os contratos e obrigações mercantis;
c) as sociedades mercantis;
d) os títulos de créditos;
e) o comércio marítimo e suas instituições;
f) a falência e seus institutos.

5. A Relação entre o Direito Comercial e o Civil - O Direito Comercial; como o do Trabalho, destacou-se do Direito Civil, alcançando autonomia científica e didática, como um direito de classe, inicialmente. O comércio, dado o seu forte incremento, não pôde acompanhar os lentos compassos de evolução do Direito Civil, porquanto este é um ramo de índole consgrvadora. Conforme destaque de Jean Cruet, o Direito Comercial, na sua ori em, não foi outra coisa senão um grande e vitorioso protesto da prática contra um direito comum muito estreito, muito lento e muito complexo, aplicado por juízes muito formalistas, estranhos ao espírito do comércio". Por outro lado, o Direito Civil possui um cunho formalista, enquanto que o Direito Comercial é estruturado com menor rigor formal. Legaz y Lacambra, fazendo paralelo entre os dois ramos, afirmou que "a maior diferença entre o Direito Civil e o Comercial está aí: o formalismo do primeiro tem criado, como réplica e complemento, a liberdade do segundo; o comércio tem preferido - por exigência de sua própria natureza - a cômoda insegurança da liberdade das formas à incômoda segurança do formalismo".

RELAÇÕES JURÍDICAS

SUJEITOS DO DIREITO: PESSOA NATURAL E PESSOA JURÍDICA

Personalidade Jurídica

O Direito pode ser considerado dos pontos de vista estático e dinâmico. Sob o primeiro aspecto, revela-se como um conjunto de regras abstratas que orientam a conduta social. Em sua manifestação dinâmica, projeta-se no quadro das relações sociais para definir, concretamente, os direitos e deveres de cada pessoa. A vida do Direito se apresenta com maior esplendor quando influencia diretamente no curso das ações sociais, por sua irradiação normativa, seja para determinar a forma de realização de um ato jurídico, indicar o comportamento devido ou para classificar fatos, imputando-lhes conseqüências jurídicas. O permanente objetivo do Direito, em suas manifestações diversas, é o ser humano. As relações que define envolvem apenas os interesses e os valores necessários ao ente dotado de razão e vontade. O homem constitui, pois, o centro de determinações do Direito. Na acepção jurídica, pessoa é o ser, individual ou coletivo, dotado de direitos e deveres. Além do sentido jurídico, a palavra pessoa apresenta outras conotações. Na acepção biológica, significa homem e na linguagem filosófica o ser inteligente, que se orienta teleologicamente. Do ponto de vista religioso, pessoa é o ser dotado de alma. Personalidade juridica, atributo essencial ao ser humano, é a aptidão para possuirdireitos e deveres, que a ordem juridica reconhece a todas as pessoas. Em nosso Direito, esse reconhecimento é feito pelo art. 2º do Código Civil: "Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil." Todo fato regulado por norma jurídica constitui sempre um vínculo entre pessoas. Sujeito ou titular é o portador de direitos ou deveres em uma relação jurídica. Kelsen contesta a teoria tradicional, que identifica o conceito de sujeito do direito com o de pessoas. Para o jurista austríaco, pessoa "é a unidade de um complexo de deveres jurídicos e direitos subjetivos. Como estes deveres jurídicos e direitos subjetivos são estatuídos por normas jurídicas - melhor: são normas jurídicas -, o problema da pessoa é, em última análise, o problema da unidade de um complexo de normas". O pensamento de Recaséns Siches é semelhante ao kelseniano. A personalidade jurídica que o ser individual ou coletivo possui, em si a opinião, não é uma realidade ou um fato, mas uma categoria jurídica, uma criação jurídica, que pode ser aplicada a diferentes substratos: "La personalidad es la forma jurídica de unificación de relaciones." Enquanto, modernamente, toda pessoa é portadora de direitos e deveres e apenas o ser humano e o ser coletivo possuem personalidade jurídica, no passado a realidade era bem outra. É fato conhecido que Calígula, imperador romano, chegou a nomear o seu cavalo para o cargo de cônsul; "...um dos livros da Lei de Parsis, o Código do cão pastor - narra Edmond Picard -, reconhece a este quadrúpede ágil e vigilante o direito de matar um carneiro para se alimentar, quando pela quarta vez o dono lhe recusa de comer."" Se por esses exemplos os animais aparecem como alvo de honraria e benefício, em outros , surgem como réus que respondem a processo regular. Diz Kelsen que durante a Idade Média, "era possível pôr uma ação contra um animal - contra um touro, por exemplo, que houvesse provocado a morte de um homem, ou contra os gafanhotos que tivessem aniquilado as colheitas. Um animal processado era condenado na forma legal e enforcado, precisamente como se fosse um criminoso humano". Paradoxalmente, na mesma época em que se concediam direitos aos animais, negava-se tutela jurídica a determinadas classes sociais. Os estrangeiros, denominados hostis, não possuíam o amparo da lei. Os escravos, perante o Direito Romano, por lhes faltarem o status libertatis, não possuíam personalidade jurídica. É comum, porém, encontrar- se, nos textos romanos, a palavra pessoa empregada no sentido de ser humano, conforme observa San Tiago Dantas. O jurisconsulto Gaio, por exemplo, em uma divisão que apresentou quanto às pessoas, distinguiu duas espécies: livres e escravos, reconhecendo, pois, a estes a condição de pessoa. Malgrado a inferioridade jurídica dos escravos, em Roma chegaram a alcançar alguns benefícios, como o de participarem de entidades religiosas, collegia funeratia; obter algumas vantagens em relação aos senhores e adquirir, inclusive, com o seu pecúlio, o estado de liberdade. Além da odiosa discriminação contra os estrangeiros, que se atenuou aos poucos até desaparecer, e o tratamento impiedoso dispensado aos escravos, houve, em Roma, a chamada morte civil, que ocorria nas hipóteses de condenação à prisão perpétua e na investidura em determinadas ordens monásticas. Em decorrência da morte civil, seguia-se a abertura do processo de sucessão. Ainda, em Roma, não se considerava pessoa o recém-nascido que não fosse apto a viver ou não possuísse forma humana. As páginas da história que descrevem tais situações, consideradas , hoje, absurdas, revelam não apenas um capítulo da História do Direito , mas a própria vicissitude humana, em seu permanente esforço de auto-superação, em favor dos imperativos da razão. Além de dispor sobre a pessoa individual, comumente designada por pessoa natural ou física, constituída pelo ser humano, a Ciência do Direito criou a chamada pessoa juridica, que se forma pela coletividade de indivíduos ou por um acervo de bens colocado para a realização de fins sociais.

Pessoa Natural

I . Considerações Prévias - A palavra pessoa, que hoje identifica o portador de direitos e obrigações, provém do vocábulo latino persona e tem a sua origem na Antigüidade Clássica. Era empregada, conforme Aulo Gelio esclarece, para designar a máscara, larva histrionalis, que os atores usavam em suas apresentações nos palcos, com o fìm de tornar a sua voz mais vibrante e sonora. Em sua evolução semântica, persona passou a denominar o próprio ator, o personagem, para depois estender o seu significado e indicar, genericamente, o homem. O estudo das pessoas é um capítulo de grande relevo que a Teoria Geral do Direito apresenta. Apesar de sua regulamentação jurídica, em nosso sistema, inserir-se no Códigó Civil, é matéria que extrapola o interesse restrito desse ramo e do próprio Direito Privado, pois repercute intensamente nas diferentes espécies de relações jurídicas, apresentando, assim, um significado universal para o Direito. A terminologia consagrada pelo sistema brasileiro, pessoa natural e pessoa juridica, para designar, respectivamente, o individual e o coletivo, não é a mais adequada, porque, na realidade, ambas são pessoas jurídicas. Daí Eduardo García Máynez, entre outros autores, preferir nomeá-las por pessoa juridica individual e pessoa juridica coletiva. Em seu famoso "Esboço", Teixeira de Freitas propôs as denominaçòes de existência visivel e de existência ideal, acolhidas, posteriormente, pelo Código Civil argentino.

2. Inicio e Fim da Personalidade - No campo doutrinário, há duas correntes a respeito do início da personalidade humana. Uma considera mais acertado fixar-se esse começo a partir do nascimento com vida, enquanto que outra, sustentada entre nós por Teixeira de Freitas, Nabuco de Araújo e Félício dos Santos, indica o momento da concepção. O legislador brasileiro optou pela primeira fórmula por considerá-la mais prática. Ao mesmo tempo, porém, dispôs quanto à proteção dos interesses do nascituro. A matéria é regulada pelo art.4º da lei civil: "A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro." O Direito brasileiro considera a respiração como indicativo de vida, tanto que a Lei dos Registros Públicos determina dois assentos, o de nascimento e o de óbito, quando a criança, havendo respirado, morre no momento do parto. Nos processos judiciais em que se manifesta o interesse do nascituro, é designado um curador ao ventre, durante o seu período de vida intra-uterina. A personalidade jurídica cessa, conforme dispõe o art. 10 do Código Civil, com a morte e pela declaração de ausência por ato do juiz. Quanto à hipótese em que mais de uma pessoa são encontradas sem vida e for relevante apurar-se a ordem dos óbitos, o sistema brasileiro considera-os simultâneos, caso não se consiga provar o contrário. Em relação à comoriência, portanto, o legislador brasileiro estabeleceu uma presunção relativa (juris tantum) e afastou-se do modelo romano.9 O esclarecimento quanto à seqüência das mortes é relevante apenas quando envolve matéria de sucessão. No tocante à ausência, esta se caracteriza, do ponto de vistajurídico, quando o juiz a declara, após ficar comprovado, em processo especial, que uma pessoa desapareceu de seu domicílio e dela não se tem notícia, decorrido determinado lapso de tempo.

3. Capacidade de Fato - Conforme examinamos no princípio deste capítulo, a personalidadejurídica consiste na aptidão para possuir direitos e deveres, que a ordem jurídica reconhece a todas as pessoas. Para se obter a personalidade jurídica, o nascimento com vida é o suficiente, pois o Direito não impõe qualquer outra condição. Capacidade de fato consiste na aptidão reconhecida à pessoa natural para exercitar os seus direitos e deveres. Enquanto que a personalidade jurídica se estende a todas as pessoas incondicionalmente e se refere à fruição de direitos e à aquisição de deveres, a capacidade de fato está condicionada a vários requisitos que a legislação apresenta e se refere à possibilidade de a pessoa praticar os atos da vida civil. A incapacidade de fato se divide em absoluta e relativa. Os absolutamente incapazes são impedidos de praticar quaisquer atos da vida civil, devendo ser representados por seus responsáveis. O art. 3º do Código Civil enumera-os:
I - Os menores de 16 anos.
II - Os loucos de todo o gênero.
III - Os surdos-mudos, que não puderem exprimir a sua vontade.
IV - Os ausentes, declarados tais por ato do juiz.
Os relativamente incapazes podem praticar atos da vida civil,
desde que assistidos por seus responsáveis. O art. 4º do Código Civil
indica-os:
I - Os maiores de 16 anos e menores de 21 anos (arts.154 a 156).
II - Os pródigos.
III - Os silvícolas.
A espécie de incapacidade, referida no item I, desaparece com o fato jurídico da emancipação, definida no § lo do artigo 9o do citado diploma legal. Pródiga é a pessoa portadora de uma anomalia psíquica, que a induz a esbanjar seus bens; é aquela que perde a noção dos valores econômicos e se revela perdulária. A sua incapacidade de praticar atos jurídicos fica restrita às atividades econômicas e é suprida pela nomeação de um curador. Quanto aos silvícolas, dispõe o parágrafo único do art. 6o que "ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do País".

4. Registro, Nome e Domicilio Civil - Os acontecimentos mais importantes na vida da pessoa, do ponto de vista da organização social, devem ser inscritos em registro público, de acordo com as hipóteses previstas no art. 12 da lei civil. A sua finalidade é a de prover a organização social fornecendo aos interessados as informações necessárias mediante o fornecimento de certidões expedidas pelos cartórios.
De acordo com o dispositivo citado, devem ser inscritos:
I - Os nascimentos, casamentos, separações judiciais, divórcios
e óbitos.
II - A emancipação por outorga do pai ou da mãe, ou por sentença
do juiz (art. 9o, parágrafo único, no I ).
III - A interdição dos loucos, dos surdos-mudos e dos pródigos.
IV - A sentença declaratória da ausência.
Ao se inscrever, no registro civil, o nascimento da pessoa natural, é indispensável que se lhe atribua um nome, para efeito de sua identificação. Este se completa com o assentamento do nome de sua filiação e de seus avós. Conforme esclarece Jefferson Daibert, o nome "é a expressão mais característica da personalidade, o elemento inalienável e imprescritível da individualidade da pessoa". Quanto à natureza do nome civil; doutrinariamente se discute se corresponde a um direito de propriedade ou se consiste em um direito de personalidade. Predomina, porém, a segunda concepção, sob o fundamento de que, além de não possuir valor patrimonial, é inalienável e irrenunciável. O nome civil possui dois conaponentes: o prenome e o cognome ou nome patronimico. O primeiro elemento é individual e decorre da preferência e livre escolha dos pais, enquanto que o segundo corresponde ao próprio cognome dos pais e é básico para a vinculação da pessoa à famlia. Quanto à alteração do nome civil, a legislação adota, por princípio, a imutabilidade do prenome, com ressalva, porém, a situações que especifica, como a que expõe a pessoa ao ridículo. Para vários fins de Direito, é indispensável que a pessoa natural tenha um domicílio, o qual corresponde ao lugar onde reside com ânimo definitivo. Na hipótese de a pessoa possuir mais de uma residência regular ou atividades permanentes em vários lugares, pelo que dispõe o art. 32 do Código Civil, "considerar-se-á domicílio seu qualquer destes ou daqueles". No caso de a pessoa não possuir residência habitual, ou empregar a sua vida em viagens, sem um local certo de negócios, ter-se-á por seu domicílio o lugar em que for encontrada.
Várias outras disposições acham-se inseridas no Código Civil, art. 31
e seguintes.

Pessoa Jurídica

1. Conceito - Pessoa juridica é uma construção elaborada pela Ciência do Direito, em decorrência da necessidade social de criação de entidades capazes de realizarem determinados fins, que não são alcançados normalmente pela atividade individual isolada. Conforme acentua Orozimbo Nonato, a existência desses entes decorre de uma outorga da ordem jurídica." Elas ccnstituem, no dizer de Orlando Gomes , "grupos humanos personificados para a realização de um fim comum" e, na definição simples e precisa de Jefferson Daibert, pessoa jurídica "é o conjunto de pessoas ou bens destinados à realização de um fim a quem o direito reconhece aptidão para ser titular de direitos e obrígações na ordem civil". Apesar de o Direito Romano ter apresentado algumas situações jurídicas que se aproximam do conceito de pessoajurídica, não se pode concluir que esta se configurou entre os romanos. Ao collegium e a sodalitas, conforme esclarece San'Tiago Dantas, o Direito Romano apenas conferiu alguns atributos, notadamente o de se representarem em juízo por uma única pessoa (actor ou syndicus) e o de possuírem um- patrimônio (arca), distinto do pertencente a cada um de seus membros. A grande evolução que se processou entre os romanos nessa parte foi com a noção áe fiscum, pela qual se passou a distinguir o patrimônio do imperador daquele outro que se destinava a atender os , interesses da coletividade. O fiscum, porém, não possuía uma personalidade jurídica. O conceito de pessoa jurídica foi uma elaboração do Direito Canônico. A dificuldade encontrada pelos canonistas para definirem a situação jurídica da Igreja, que não se confundia na pessoa de seus fiéis ou oficiantes, levou-os à concepção dos seres coletivos. Diante de um interesse concreto, aqueles teóricos chegaram a imaginar uma entidade distinta de seus membros e capaz de realizar determinados fins, mediante um acervo de bens. Ali estava, na opinião de San Tiago Dantas, a origem da pessoa jurídica. "Esta concepção dos canonistas, que no corpo místico viram uma entidade jurídica, permitiu que se insinuasse no Direito a noção que hoje em dia floresceria como noção de pessoa jurídica."
Limongi França, como caracteres básicos da pessoa jurídica, aponta os seguintes princípios:
a) "Universitas distat a singulis", a universalidade dista da singularidade. Tal princípio evidencia que a pessoa jurídica não se confunde com as pessoas naturais, singulares, que a integram. Neste sentido, o caput do art. 20 de nossa lei civil dispõe que "as pessoas jurídicas têm existência distinta da de seus membros".
b) "uod debet, universitas non debent singuli et quod debent singuli nos debent universitas", o que deve a pessoa juridica não devem os individuos que a integram, e o que devem os individuos a pessoa juridica não deve. Tal princípio é uma decorrência natural e necessária do anterior.
c) A personalidade jurídica da pessoa coletiva garante-lhe, em princípio, iguais direitos e obrigações aos que possuem as pessoas naturais. É evidente que as exceções a tal enunciado são muitas: obrigações perante o Serviço Mihtar, direitos políticos, matéria de família etc.
d) A administração dos interesses da pessoa jurídica desenvolvese sob o comando de pessoas naturais.

2. Natureza Juridica das Pessoas Juridicas - Uma das questões complexas que a doutrina acusa, no tocante às pessoas jurídicas ou morais, é a de se precisar a sua natureza jurídica. Entre as principais concepções, destacam-se as seguintes:

2.1. Teoria da Ficção - O principal expositor da presente teoria foi o jurista alemão Savigny, que partiu da premissa de que personalidade jurídica é atributo próprio dos seres dotados de vontade. Como as pessoas jurídicas carecem de arbítrio, segue-se que a sua personalidade é admitida por uma ficção jurídica. Definiu a pessoa jurídica como "ente criado artificialmente e capaz de possuir um patrimônio". A presente concepção é vista como um desdobramento da teoria de Windscheid sobre os direitos subjetivos, situados por esse pandetista como "o poder ou senhorio da vontade reconhecido pela ordem jurídica". As críticas que se apresentam à teoria da ficÇão ocupam-se fundamentalmente de sua premissa, segundo a qual a personalidade jurídica das pessoas naturais é uma decorrência de sua faculdade de querer. Se o elemento vontade fosse essencial, como se justificaria a personalidade jurídica dos infantes e idiotas? Além desta observação, seus opositores alegam que as pessoas jurídicas são entes que possuem determinados fins e capacidade para realizá-los.

2.2. Teoria dos Direitos sem Sujeitos - A essência da pessoa jurídica, de acordo com o pensamento do pandetista Brinz, principal expositor desta teoria, localiza-se em uma distinção de natureza patrimonial. Haveria duas categorias de patrimônio: pessoal e impessoal, também denominadas patrimônios afetos a um fim. Enquanto o patrimônio pessoal, como seu nome indica, pertence a determinado indivíduo, o impessoal carece de dono e seu vínculo prende-se à realização de um determinado fim, gozando, para isto, de proteção jurídica. A crítica que se faz à presente concepção é a de que não é possível haver direito ou dever desvinculado de um titular, pois direito significa poder de agir conferido a alguém, e todo dever pressupõe um obrigado.

2.3. Teorias Realistas - Sob a denominação genérica de teorias realistas agrupam-se diversas concepções que apresentam, como denominador comum, o entendimento de que a pessoajurídica não constitui uma ficção, mas uma realidade. Desvinculam a personalidade jurídica do elemento vontade. Entre as teorias realistas, a que mais se projetou foi a de Otto Gierke, denominada "teoria do organismo social". Para o jurista germânico, não há uma separação absoluta entre a pessoa jurídica e os membros que a integram; ela não se coloca perante os seus membros como algo estranho. A pessoa jurídica se distingue de seus membros, mas ao mesmo tempo constitui uma unidade com eles. Possui vontade própria, que não é senão uma decorrência da vontade dos indivíduos que a compõem. A concepção apresentada por Giorgi, Fadda e Bensa, denominada "teoria da realidade objetiva", admite que a pessoa jurídica possui existência real, sob o fundamento de que mostra fortes semelhanças com a pessoa natural.

3. Classificação das Pessoas Juridicas - Enquanto o conceito de pessoa jurídica é de natureza universal, a sua classificação completa varia de acordo com os sistemas jurídicos. A tipologia apresentada pelo ordenamento nacional corresponde, em linha geral, aos critérios básicos apontados pelo Direito Comparado. A principal classificação dos seres coletivos é uma projeção da maior divisão do Direito Positivo: pessoas jurídicas de Direito Público e pessoas jurídicas de Direito Privado. As primeiras se dividem, consoante o disposto no art.14 do Código Civil, em pessoas jurídicas de Direito Público externo, representadas pelos Estados e órgãos análogos, como a Organização das Nações Unidas (ONU), e pessoas jurídicas de Direito Público interno, que englobam a União, Estados-membros, Distrito Federal e os Municípios. As autarquias administrativas enquadram-se também nesta categoria. As pessoas jurídicas de Direito Privado, previstas no art.16 da lei civil, dividem-se em associações, fundações e sociedades civis ou comerciais. As associações (universitas personarum) são entidades que visam a fins culturais, beneficentes, esportivos, religiosos. Não faz parte da natureza das associações o fito de lucro. Podem desenvolver alguma atividade econômica, mas desde que o lucro auferido se destine à consecução do seu objeto e não para divisão entre os associados. As fundações, que correspondem a universitas bonorum do Direito Romano, caracterizam-se pela existência de um acervo econômico, instituído como instrumento ou meio para a realização de determinado fim. As sociedades são pessoas jurídicas que objetivam fins lucrativos, com a finalidade de partilhar os resultados entre seus membros. Enquanto que na sociedade civil a atividade não envolve compra e venda e se caracteriza pela prestação de serviços, como em uma sociedade formada por profissionaìs liberais, é da natureza da sociedade comercial os negócios que envolvem a troca de riquezas. Enquanto as sociedades mercantis são disciplinadas pelo Código Comercial e leis comerciais complementares, as demais categorias são reguladas pelo Código Civil.
RELAÇÃO JURÍDICA: CONCEITO, FORMAÇÃO, ELEMENTOS

Conceito de Relação Jurídica

A relação jurídica faz parte do elenco dos conceitos juridicos fundamentais e constitui um ponto de convergência de vários componentes do Direito. A sua compreensão é elemento-chave para o conhecimento da Teoria Geral do Direito. Não se entrelaçam fatos sociais e regras de Direito. É no quadro amplo das relações jurídicas que se apresentam os sujeitos do direito e se projetam direitos subjetivos e deveres jurídicos. Há determinadas relações que efetivamente antecedem à regulamentação jurídica, pois expressam fenômenos de ordem natural, in rerum natura, como é o fato, por exemplo, da filiação. São as relações jurídicas que dão movimento ao Direito. Em cada uma ocorre a incidência de normas jurídicas, que de incluem direitos e deveres dos sujeitos. Há relação jurídica que se exige tão logo é produzido o seu efeito: a relação que se estabelece entre o passageiro e o motorista de praça desaparece quando, no local de destino, o preço da corrida é pago. Outras há cujos efeitos são duradouros, como se passa nas relações matrimoniais. Na maior parte dos vínculos, os dois sujeitos possuem direitos e deveres, como nas relações de emprego. Há relações em que os poderes e as obrigaçôes são recíprocos e de igual conteúdo para as duas partes: dever de coabitação entre os cônjuges.

Formação da Relação Jurídica

As relações de vida formam-se em decorrência de determinados fatores que aproximam os homens e os levam ao convívio. Tais fatores são de natureza fisiológica, econômica, moral, cultural, recreativa etc. A necessidade que o homem possui de suprir as suas várias carências é que o induz à convivência. É pela vida associativa que obtém os complementos indispensáveis à sua sobrevivência, à satisfação de seus instintos básicos, ao conhecimento das coisas e da própria natureza. São as relações intersubjetivas que formam o suporte ou a matéria das relações de direito. Quando essas relações de vida repercutem no equilíbrio social, não podem permanecer sob o comando aleatório das preferências individuais. Nessa hipótese é mister a regulamentação jurídica. Uma vez subordinadas ao império da lei, as relações sociais ganham o qualitativo jurídico. Quanto às relações sociais que surgem espontaneamente e não em decorrência de uma elaboração legal, conforme assinala Jean Dabin, há uma categoria que se revela legítima e outra que se forma de acordo com os princípios e valores sociais. Quanto às relações sociais consideradas negativas ou prejudiciais ao interesse coletivo, o Estado pode proibi-las mediante normas específicas. Tais relações passam a ser consideradas ilícitas e combatidas pelá çoorcitividade:estatal. A atitude quanto à essa classe de relação social poderá ser outra, contudo. Por a razões de oportunidade ou de impotência para controlá-la, o Estado é levado à tolerância. Não as proíbe, mas também não as declara lícitas. Quanto às relações sociais voluntárias, que beneficiam o interesse coletivo, além de reconhecer a sua licitude, o Estado poderá discipliná-las, se for conveniente, e até mesmo ajudá-las. As relações jurídicas se formam pela incidência de normas jurídicas em fatos sociais. Quando ocorre um determinado acontecimento regulado por regras de Direito, instaura-se uma relação jurídica. Se toda relação jurídica pressupõe uma relação de vida, toda relação social ingressa no mundo do Direito, mas apenas as que se referem aos interesses fumendamentais de proteção à pessoa e aos interesses coletivos. Assim, os víncul os de amizade, laços sentimentais, permanecem apenas no plano fático. É a politica juridica que indica ao legislador as relações sociais que necessitam de regulamentação jurídica. O Estado possui a faculdade de impor normas de conduta às diferentes questões sociais. A legitimidade para a ação legislafiva, contudo, apresenta limites. As relações puramente espirituais, os fatos da consciência, escapam à competência do legislador, pois "o espírito sopra onde quer". Quando as relações sociais se desenvolvem uormalmente pelos costumes, sem acusar problemas de convivência, não é recomendável que a lei as discipline pois, além de inútil, pode quebrar a harmonia que espontaneamente existe nas relações intersubjetivas.

Elementos da Relação Jurídica

Os elementos que integram a relação jurídica são os seguintes: sujeito ativo, sujeito passivo, vinculo de atributividade e objeto. O fato e a norma jurídica, que alguns autores arrolam como elementos, são antes pressupostos da existência da relação jurídica.

1. Sujeitos da Relação Juridica - Entre os caracteres das relações jurídicas, há a chamada alteridade, que significa a relação de homem para homem. Nesse vínculo intersubjetivo, cada qual possui uma situação jurídica própria. Esta consiste na posição que a parte ocupa na relação, como titular de direito ou de dever. Denomina-se situação juridica ativa a que corresponde à posição do agente portador de direito subjetivo e situação jccridica passiva, a do possuidor de deverjurídico. Parte é a pessoa ou conjunto de pessoas que possui uma situação jurídica ativa ou passiva. A referência que se faz com o vocábulo parte é para distinguir os participantes da relação dos chamados terceiros, que são pessoas alheias ao vínculo jurídico. Denomina-se sujeito ativo a pessoa que, na relação, ocupa a situação juridica ativa; é o portador do direito subjetivo que tem o
poder de exigir do sujeito passivo o cumprimento do dever jurídico. Como na maioría das relações jurídicas as duas partes possuem direitos e deveres entre si, sujeito ativo é o credor da prestação principal. Sujeito ativo ou titular do direito é a pessoa natural ou jurídica. Na opinião de Jean Dabin, há muitas regrasjurídicas que não apresentam sujeito ativo, como as relativas ao sistema da tutela, domicílio ou as que são ditadas em interesse de terceiros em geral. Daí o antigo professor da Universidade de Louvain considerar "um erro representar-se o mundo do Direito, sob o pretexto de que rege as relações dos homens entre si, como uma rede de laços de direito e obrigações entre pessoas determinadas." Mas, se é possível uma norma jurídica que não apresente sujeito ativo, tal não é admissível quanto às relações jurídicas. Sujeito passivo é o elemento que integra a relação jurídica com a obrigação de uma conduta ou prestação em favor do sujeito ativo. O sujeito passivo é o responsável pela obrigação principal. Sujeito ativo e passivo apresentam-se sempre em conjunto nas relações jurídicas. Um não pode existir sem o outro, do mesmo modo que não existe direito onde não há dever. A relação jurídica que envolve apenas duas pessoas é denominada simples. Plurilateral é a relação em que mais de uma pessoa apresenta-se na situação jurídica ativa ou passiva. Quanto aos sujeitos ainda, as relações podem ser relativas ou absolutas. Relativa é aquela em que uma pessoa ou um grupo de pessoas figura como sujeito passivo. Absoluta é quando a coletividade se apresenta como sujeito passivo, o que ocorre, quanto ao direito de propriedade e nos direitos personalíssimos, em que todas as pessoas têm o dever de respeitá-los investindo-se, pois, na situaçãojurídica passiva. A relação jurídica pode ser de Direito Público ou de Direito Privado. A primeira hipótese também denominada relação de subordinação, ocorre quando o Estado participa na relação como sujeito ativo, impondo o seu imperium. Direito Privado, ou de coordenação, quando é integrada por particular em um plano de igualdade, podendo o Estado nela participar desde que não esteja não investido de sua autoridade.

2. Vinculo de Atributividade - No dizer de Miguel Reale, o vículo de atributividade é o vínculo que confere a cada um dos participantes da relação o poder de pretender ou exigir algo determinado ou determinável". O vínculo de atributividade pode ter por origem o contrato ou a lei.

3. Objeto - O vinculo existente na relação jurídica está sendo em função de um objeto. As relações jurídicas são estabelecidas tendo um fim específico. A relação jurídica criada pelo contrato compra e venda, por exemplo, tem por objeto a entrega da mercadoria, enquanto que no contrato de trabalho o objeto é a realização do trabalho. É sobre o objeto que recai a exigência do sujeito ativo e o dever do sujeito passivo. Ahrens, Vanni e Coviello, entre outros juristas, distinguem o objeto de conteúdo da relação jurídica. O objeto, também denominado objeto imediato, é a coisa em que recai o poder do sujeito ativo, enquanto o conteúdo, ou objeto mediato, é o fim que o direito garante. O objejeto é o meio para se atingir o fim, enquanto que o fim garantido ao sujeito ativo denomina-se conteúdo. Flóscolo da Nóbrega, com clareza, exemplifica: "na propriedade, o conteúdo é a utilização plena da coisa, o objeto é a coisa em si; na hipoteca, o objeto é a coisa, o conteúdo é a garantia à dívida; na empreitada, o conteúdo é a realização da obra, o objeto é prestação do trabalho; numa sociedade comercial, o conteúdo são os lucros procurados, o objeto é o ramo de negócio explorado." No estudo do objeto da relação jurídica, várias questões ainda se acham pendentes de definição doutrinária. Entre os autores não há uniformidade de pensamento. Hübner Gallo, nesse sentido, afirmou: "está por elaborar-se uma teoria geral do objeto do direito, ponto sobre o qual existe notória confusão e disparidade de critérios ..." O objeto da relação jurídica recai sempre sobre um bem. Em função deste, a relação pode ser patrimonial ou não-patrimonial, conforme apresente um valor pecuniário ou não. Autores há que identificam o elemento econômico em toda espécie de relação jurídica, sob o fundamento de que a violação do direito alheio provoca uma indenização em dinheiro. Conforme observa Icílio Vanni, há um equívoco porque na hipótese de danos morais, o ressarcimento em moeda se apresenta apenas como um sucedâneo, uma compensação que tem lugar apenas quando a ofensa à vítima acarreta-lhe prejuízo, direta ou indiretamente, em seus interesses econômicos. A indenização não é medida
pelo valor do bem ofendido, mas pelas conseqüências decorrentes da lesão ao direito. A doutrina registra, com muita divergência, que o poder jurídico de uma pessoa recai sobre:
a) a própria pessoa;
b) outras pessoas;
c) coisas.
Quanto à possibilidade de o poder jurídico incidir sobre a própria pessoa, alguns autores a rejeitam, sob a alegação de que não é possível, do ponto de vista da lógicajurídica, uma pessoa ser, ao mesmo tempo, sujeito ativo e objeto da relação. Tendo em vista o progresso da ciência, que tornou possíveis conquistas extraordinárias, como a de um ser vivo ceder a outro um órgão vital, parte de seu corpo, em face do elevado alcance social e moral que esse fato apresenta, entendemos que a Ciência do Direito não pode recusar essa possibilidade, devendo, sim, a lógica jurídica render-se à lógica da vida. Dentro dessa ordem de indagação, surge um problema apresentado por João Arruda: o indivíduo possui direito sobre as peças anatômicas destacadas de seu corpo? Extirpado um órgão do corpo humano, esse pode ser apropriado pelo cirurgião? João Arruda defendeu a tese de que "o homem tem direito às diferentes partes do seu corpo, mesmo quando essas partes sejam deste separadas... não se dá aí direito ao médico, pelo corte de uma parte do corpo, ou ao dentista pela extração de dentes, é que não há, nesses casos, como se diz, a ocupação determinando a propriedade do operador". Entendemos que o aspecto jurídico desta matéria acha-se inteiramente subordinado aos valores morais. O Direito Positivo deve consagrar alguns princípios apenas para admitir, em tal hipótese, que a pessoa autorize ou não uma destinação nobre para o órgão extraído de seu corpo. Quanto à possibilidade de o poder jurídico recair sobre outra pessoa, a maior parte da doutrina revela-se contrária, destacando-se, nesse sentido, as opiniões de Luis Legaz y Lacambra e Luis Recaséns Siches. Entre nós, Miguel Reale admite que uma pessoa possa ser objeto de direito, sob a justificativa de que "tudo está em considerar a palavra 'objeto' apenas no sentido lógico, ou seja, como a razão em virtude da qual o vínculo se estabelece. Assim a lei civil atribui ao pai uma soma de poderes e deveres quanto à pessoa do filho menor, que é a razão do instituto do pátrio poder."
ORIGEM DO ESTADO

A questão da origem do Estado acha-se envolvida por uma névoa de incerteza, que gera, na doutrina, uma pluralidade de opiniões, que se guiam mais por motivos instintivos ou lógicos do que por razões históricas propriamente. A orientação religiosa, apresentada por São Paulo, é no sentido de que todo poder emana de Deus e o Estado decorre de uma intencionalidade divina. Esta teoria situa-se apenas no plano de fé e, por carecer de elementos fatuais ou científicos, não
esclarece a gênese do organismo estatal.

1. Teoria do Contrato Social - Esta concepção não surgiu com o objetivo de apresentar uma explicação histórica para a formação do Estado, mas para esclarecer a sua fundação racional. Foi divulgada principalmente pelos adeptos da Escola de Direito Natural e suas raízes se localizam na filosofia epicurista. O contrato social é uma idéia ligada ao estado de natureza. Quando os homens passaram do status naturae para o status societatis, teria havido um pacto de harmonia (pactum unionis), por força do qual se obrigariam a viver pacificamente. Concomitantemente, ou em um segundo momento, o povo, criado pelo pactum unionis, firma um outro contrato, o pactum subjectionis, em virtude do qual os homens em sociedade se submetiam a um governo por eles escolhido. Essa doutrina, conforme acentua Del Vecchio, tem mais a finalidade de mostrar como o poder político emana do povo e reivindicar para este o direito soberano. Foi Rousseau quem apresentou e analisou o contrato social apenas como fator explicativo e não como um fato historicamente havido.

2. Teoria Patriarcal - A presente teoria teve em Sumner Maine (1822-1888) o seu principal expositor, que a desenvolveu em sua obra As Instituições Primitivas. A idéia básica desta concepção é a de que, no passado mais remoto, a única organização social que existia era representada pelas famílias separadas. Em cada um desses núcleos, formados pela agrupação de consangüíneos, a autoridade competia ao ascendente varão mais antigo, que possuía um poder absoluto sobre a vida e a morte de seus integrantes. Quanto à descendência, esta se definia pela linha masculina, a partir de um antepassado varão. Segundo a teoria patriarcalista, a evolução que a seguir se processou teve as seguintes etapas: família patriarcal, tribo, cidade, Estado. Maine fundou o seu estudo em pesquisas que encetou sobre a organização de alguns povos antigos, entre os quais o hindu, grego, romano, germano etc.

3. Teoria Matriarcal - Para o matriarcalismo, a vida humana se desenvolveu, primeiramente, pela liorda, em que os indivíduos eram nômades e não possuíam normas definidas. Nessa fase não havia sequer a noção de família ou de parentesco. A promiscuidade sexual era absoluta (eterismo). Tal hipótese foi formulada por Bachofen, em sua obra 0 Direito Materno ( 1861 ). Para o matriarcado, que teve em Lewis Morgan ( 1818-1881 ) o seu principal expositor, por sua obra A Sociedade Primitiva ( 1871 ), a filiação feminina antecedeu à masculina e a chefia da família competia à mãe, enquanto que o pai, ou não era membro da família, ou ocupava uma posição subordinada (periodo do direito das mães). Apenas em uma etapa mais adiantada é que a família teria se organizado com a preeminência do pai.

4. Teoria Sociológica - Entre os adeptos da presente teoria, destaca-se o nome do eminente sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917) que, em sua obra Formas Elementares da Vida Religiosa (1912), sutentou a idéia de que os primeiros grupos não foram constituídos pela família, mas pelo clã, constituído não por vínculos de parentesco, mas pela identidade de crença religiosa. Os membros do clã acreditavam na existência do totem, que seria o antepassado místico do qual eram descendentes. O Estado teria surgido como decorrência da evolução da organização clânica para a territorial, em que.os laços espirituais já não decorriam do totemismo, mas do fato de ocuparem uma igual área geográfica.

Fins do Estado

I. As Três Concepções - O fim a ser alcançado pelo Estado, na gestão dos interesses sociais, pode ser inspirado por filosofias distintas, em que se apresentam duas posições radicais:" uma que situa o indivíduo em primeiro plano e outra que se caracteriza pelo pensamento coletivista. Nesse processo dialético, a síntese se apresenta por uma corrente de natureza eclética, que zela pela convivência dos valores individualistas e coletivistas. Gustav Radbruch estudou essa questão apresentando as três concepções sob as denominações: individcralista, supra-individualista e transpersonalista, a seguir analisadas.

2. Concepção Individualista - O individualismo é impregnado pelo pensamento liberal, da máxima liberdade dos indivíduos e da mínima intervenção do Estado. Esta filosofia se projeta no campo político, jurídico, econômico. Seus adeptos entendem que o Direito e o Estado são apenas instrumentos para o bem-estar dos indivíduos. Esta concepção deu os seus primeiros passos já na Idade Média, com a famosa Carta Magna, promulgada em 1215, pelo rei João Sem Terra , que atendeu a uma série de reivindicações dos senhores barões. A teoria do contrato social surgiu diante da necessidade de se estabelecerem limites à ação do Estado. Igual foi o objetivo pelo qual Cristiano Tomásio, em 1705, fixou a distinção entre o campo do Direito e o da Moral. Ao Estado competia apenas disciplinar o forum externum dos indivíduos e não o forum internum, que seria um setor exclusivo da Moral. As revoluções inglesa ( 1688), americana ( 1774) e francesa ( 1789) revelaram já o enfraquecimento da onipotência do Estado, em favor do pensamento liberal. Kant limitou a função do poder eslatal à atividade de naturezajurídica; como guardião do Direito. Seria apenas um Estado Jurídico, em função da segurança jurídica. No campo econômico, conforme analisa Del Vecchio, o liberalismo individualista exerceu poderosa influência no sentido de impedir, a intervenção estatal, em favor das chamadas leis naturais da oferta e da procura. As afirmações individualistas foram sintetizadas por João Mendes de Almeida Júnior:
1o) Sempre que o direito individual estiver em oposição ao interesse social, prevalece o direito individual;
2o) 0 Estado deve ser, tanto quanto possível, um simples mantenedor do interesse social, sem iniciativa, sem ação integral e até mesmo sem ação conservadora, nem fiscalizadora." Os defensores dessa concepção pensam que, uma vez atendidos os interesses individuais, por esse fato, as necessidades coletivas estarão satisfeitas.

3. A Concepção Supra-Individualista - Esta teoria, denominada também por intervencionista, é uma exaltação aos valores coletivistas, em oposição aos valores do individualismo. Em algumas épocas o caráter intervencionista do Estado esteve a serviço de seu próprio fortalecimento e não com o objetivo de promover diretamente o bem estar da coletividade. Fustel de Coulanges, sobre o poder sem limites do Estado antigo, dá o seu depoimento: "Nada no homem havia de Independente. O seu corpo pertencia ao Estado e estava voltado à sua defesa... Os seus haveres estavam sempre à disposição do Estado... O Estado tinha o direito de não permitir cidadãos disformes ou monstruosos... O Estado considerava o corpo e a alma de cada cidadão como sua pertença..."" Para Fustel de Coulanges a grande força do Estado decorria do fato de ter sido gerado pela Religião. O Estado protegia a Religião e esta o apoiava, formando assim um petitio principü. O mesmo autor cita um texto de Platão, em que o filósofo grego admite a onipotência do Estado: "Os pais não devem ter a liberdade de enviar ou deixar de enviar os seus filhos aos mestres pela cidade escolhidos, porque estas crianças pertencem menos a seus pais do que à cidade." Uma revivescência, mais trágica ainda, dessa concepção de Estado, foi dramatizada por Hitler e Mussolini, em pleno séc. XX. O primeiro afirmou: "O dogma da liberdade não valerá um vintém no dia em que organizarmos verdadeiramente a nossa nação"; e o segundo declarou: "Para o fascista tudo se acha no Estado, nada humano nem espiritual existe fora dele." Como pensamento filosófico e científico, o coletivismo começou a surgir durante a Idade Moderna, com a atribuição ao organismo estatal de outras funções, como a sugerida pela fórmula Estado-de-Cultura (Kultirstaat). No setor econômico surgiu a Escola do Socialismo-Catedratico, que preconizava a intervenção do Estado no setor da economia. No âmbito do Direito à ação coletivista atuou principalmente para o enfraquecimento do principio da autonomia da vontade. Quando em uma sociedade predomina a concepção coletivista, diz Miguel Reale, a interpretação do Direito é dirigida "no sentido da limitação da liberdade em favor da igualdade". Sobre as afirmações coletivistas, João Mendes de Almeida Júnior apresenta também uma síntese:
1º) que a vida social é naturalmente necessária à conservação e aperfeiçoamento do indivíduo e que, mesmo no interesse do indivíduo, o direito individual deve sempre ceder ao interesse social; 2º) que a ação do Estado deve ser integral ou, pelo menos, conservadora, em relação às necessidades econômicas da sociedade e fiscalizadora, em relação aos direitos individuais;
3º) que, em relação às necessidades econômicas da sociedade, a ação do Estado deve ser não de conservação e de aperfeiçoamento, mas de iniciativa e integral...

4. Concepção Transpersonalista - Esta doutrina pretende a síntese integradora entre as duas correntes opostas, aproveitando os elementos conciliáveis existentes no individualismo e coletivismo. Tanto os valores individuais como os coletivistas devem subordinar-se aos valores da cultura. A, opção entre um valor e outro, quando se revelam inconciliáveis, deve ser feita de acordo com a natureza do fato concreto e em função dos prìncípios de justiça, de tal sorte que o indivíduo não seja esmagado pelo todo, nem que a coletividade seja prejudicada pelos caprichos individualistas.

Teorias sobre a Relação entre o Direito e o Estado

A análise do presente tema já deixou patenteada a ampla conexão existente entre o Direito e o Estado. Urge, agora, se estabelecer o nível desse relacionamento. A doutrina registra três concepções básicas: dualistica, monistica e a do parnlelismo. Para a teoria dccalistica, Direito e Estado constituem duas ordens inteiramente distintas e estão, um para o outro, como dois mundos que se ignoram. O absurdo desta concepção salta aos olhos. O Estado, além de ser uma instituição social, é uma pessoa jurídica, é portador de direitos e deveres. O Direito, para obter ampla efetividade, pressupõe a açâo estatal. A teoria inonistica sustenta a opinião de que Direito e Estado constituem uma só entidade. Kelsen é o seu principal defensor. Há um consenso amplo, contudo, de que o Direito, historicamente, antecedeu ao aparecimento do Estado. A teoria do paralelismo, ditada pelo bom senso, afirma que Direito e Estado são entidades distintas, mas que se acham interligadas e em regime de mútua dependência.

Arbitrariedade e Estado de Direito

l. Arbitrariedade - O conceito de arbitrariedade decorre de uma interferência do sistema de legalidade do Estado. Arbitrariedade é conduta antijuridica praticada por órgãos da administração pública e viola normas do Direito. Arbitrariedade e Direito são idéias antistéticas, inconciliáveis. O que caracteriza propriamente a arbitrariedade é o fato de uma ação violar a ordem jurídica vigente, com desatenção às formas jurídicas. Pode ser praticada mediante uma ação, quando o poder público, por exemplo, exorbita a sua competência, ou por omissão, que pode ocorrer na hipótese de um órgão administrativo negar-se à prática de um ato para o qual é competente. Consoante ressalta Júlio O. Chiappini, a violação do Direito pode alcançar tanto o aspecto de forma quanto o de conteúdo e ambas hipóteses caracterizam a infração jurídica; todavia, arbitrariedade haverá apenas quando houver ataque às formas. Isto se passa, por exemplo, quando o executivo não respeita a sua faixa de competência e dispõe sobre assunto afeto à órbita do legislativo; quando o executivo pratica ato judicante e transgride a ordem constitucional; quando o legislativo aprova uma lei sem respeitar o quorum exigido. O conceito de arbitrariedade independe, pois, do valor justiça. Ela pode ser justa ou injusta. O que não é possível é haver uma arbitrariedade legal. Conforme, ainda, o ilustre jurista argentino Julio O. Chiappini "hablar de un Derecho arbitrario, incluso, escacer en una contradictio in adjectio". Entre os meios preconizado para o combate à arbitrariedade, apontam-se os seguintes:
a) eliminação do arbítrio judicial, negando-se ao Poder Judiciário a possibilidade de criar o Direito;
b) o controle jurídico dos atos administrativos, pela instauração de uma justiça especializada;
c) o controle da constitucionalidade das leis.
2. Estado de Direito - O fundamental à caracterização do Estado de Direito é a proteção efetiva aos chamados direitos humanos. Para que esse objetivo seja alcançado é necessário que o Estado se estruture de acordo com o clássico modelo dos poderes independentes e harmônicos; que a ordem jurídica seja um todo coerente e bem definido; que o Estado se apresente não apenas como poder sancionador, mas como pessoa jurídica portadora de obrigações. A plenitude do Estado de Direito pressupõe, enfim, a participação do povo na administração pública, pela escolha de seus legítimos representantes. Goffredo Telles Júnior identifica o Estado de Direito por três notas principais: "por ser obediente ao Direito; por ser guardião dos direitos; e por ser aberto para as conquistas da cultura jttridica ". A elaboração do conceito de Estado de Direito mediante a indicação de caracteres foi considerada por Ulrich Klug uma tarefa plena de dificuldades. Em seu lugar, o jurista alemão adotou o método de delimitação negativa, recorrendo ao modelo de pensamento que denomina por máxitna de controle: não haverá Estado de Direito quando uma pessoa puder exercer sobre outra um poder incontrolado.
DEFINIÇÕES E ACEPÇÕES DA PALAVRA DIREITO

Considerações Prévias

A ampla divergência entre os, juristas, quanto à definição do Direito, Kant a afirmou, no século XVIII que os juristas ainda estão à procura de uma definição para o Direito". Decorridos dois séculos, esta crítica, sob certo aspecto, mantém-se atual, de vez que os cultores da Jurisprudentia não lograram objetivar, através de uma definição, todos os sentidos do vocábulo. As dificuldades que o problema oferece estão ligadas a dois motivos básicos, sendo um de natureza metodológica e outro vinculado a tendências filosóficas perante o Direito. O primeiro se refere à prática de se examinar diretamente o tema da definição, sem que antes se proceda ao exame dos diversos sentidos que o termo encerra. Luis Legaz y Lacambra desenvolveu uma investigação científica, a fim de buscar um conceito unitúrio que, em sua generalidade, abrangesse os vúrios signifcados do Direito. Com esta finalidade, formulou a seguinte definição descritiva: ' una forma de vida social en la cual se realiza un punto de vista sobre lajusticia, que delimita las respectivas esferas de licitud y deber, mediante un sistema de legalidade, dotado de valor autarquico." Esta definição, inspirada em Santo Tomas, é rica em elementos e possui a virtude de captar, em sua generalidade, o sentido global do Direito. Por seu elevado teor de abstração, contudo, requer complementações que explicitem os dados que contém. De outro lado, as definições sofrem a influência das inclinações do jurista; dependem do tipo de homo juridicccs que representa. Se de têmpera legalista, identificará o Direito com a norma jurídica; se idealista, colocará a justiça como elemento primordial. Os sociólogos do Direito, por sua vez, enfatizam o elemento social, enquanto que os historicistas fazem referência ao caráter evolutivo do Direito. Formas especiais de experiência conduzem a definições muitas vezes curiosas, como a formulada por Pitágoras que, sob a ótica da matemática, afirmou: "o Direito é o igual múltiplo de si mesmo".
Em lógica, o vocábulo Direito é classificado como termo análogo ou analógico, pelo fato de possuir vários significados que, apesar de se diferenciarem, guardam entre si alguns nexos. Assim, empregamos esse termo, ora em sentido objetivo, como norma de organização social, ora do ponto de vista subjetivo, para indicar o poder de agir que a lei garante; algumas vezes, como referência à Ciência do Direito e outras, como equivalente à justiça. Com esse vocábulo, fazemos alusão tanto ao Direito Positivo quanto ao Direito Natural. Uma única definição seria capaz de revelar as diversas acepções, de acordo com os pressupostos da lógica? A dificuldade seria a mesma que a de um fotógrafo que pretendesse registrar, com uma só chapa fotográfica, todas as faces de um poliedro. Daí decorre que seria um erro, conforme acentua Goffredo Telles Júnior, enunciar-se apenas uma definição do Direito. Devem-se dar tantas definições quantos os sentidos do vocábulo.

Definições Nominais

As definições podem ser nominais e reais ou lógicas. As nominais procuram expressar o significado da palavra em função do nome do objeto. Dividem-se em etimológicas e semânticas. As definições reais ou lógicas fixam a essência do objeto, fornecendo as suas notas básicas. Temos assim o quadro das definições:

l. Definição Etimológica- Esta espécie explica a origem do vocábulo, a sua genealogia. A palavra Direito é oriunda do adjetivo latino directus, uma (qualidade do que está conforme a reta; o que não tem inclinação, desvio ou curvatura), que provém do particípio passado do verbo dirigo, is, rexi, rectum, dirigere, equivalente a guiar, conduzir, traçar, alinhar. O vocábulo surgiu na Idade Média, aproximadamente no século IV, e não foi empregado pelos romanos, que se utilizaram de jus, para designar o que era licito e de injúria, para expressar o que era ilicito. A etimologia de jus é discutida pelos filólogos. Para uma corrente, próvém do latim Jussum (mandado), particípio passado do verbo jubre, que corresponde, em nossa língua, a mandar, ordenar. O radical seria do sânscrito Ycc (vínculo). Para outra corrente, o vocábulo estaria ligado a Justum (o que é justo), que teria o seu radical no védico Yós, que significa bom, santidade, práteção. Do vocábulo jus surgiram outros termos, que se incorporaram à terminologia jurídica: justiça, juiz, juízo, jurisconsulto, jurista, jurisprudência, jurisdição. A preferência dos povos em geral pelo emprego do vocábulo Direito decorre, provavelmente, do fato de possuir significado mais amplo do que jus.
2. Definição Semântica - Semântica é a parte da gramática que registra os diferentes sentidos que a palavra alcança em seu desenvolvimento. O mundo das palavras possui vida e é dinâmico. O povo cria a linguagem e é o agente de sua evolução. A palavra Direito também possui história. Desde a sua formação, até o presente, passou por significados vários. Expressou, primeiramente, a qualidade do que está conforme a retae, sucessivamente, designou: Aquilo que está conforme a lei; a própria lei; conjunto de leis; a ciência que estuda as leis. A definição nominal, a par de algumas contribuições que oferece, não pode ser nomeada como fator decisivo à formação do conhecimento científico. O excessivo recurso à lexicografia, Herman Kantorowicz denomina de "realismo verbal" e o condena: "uma definição científica não pode ser estruturada através da lexicografia, ainda quando uma grande parte dos juristas de todos os tempos haja acreditado na possibilidade da utilização desse método... Constitui, pois, eno fundamental, que tem viciado numerosas investigações em todos os campos do conhecimento, o fato de estimar as definições como algo relacionado com a questão do uso verdadeiro ou enôneo da linguagem."

Definições Reais ou Lógicas

Definir implica delimitar, assinalar as notas mais gerais e as específicas do objeto, a fim de distingui-lo de qualquer outro. Se a tarefa é difícil e, algumas vezes, árdua, nem por isto deve ser evitada, porque corresponde a uma necessidade de ordem e de firmeza dos conhecimentos, o que é indispensável à organização das ciências. Se os romanos chagaram a afirmar que Omne definitio periculosa est (toda definição é perigosa), não negaram que Definitio est initium omni disputationi (a definição é o princípio para toda disputa). A técnica das definições reais exige a escolha de um método adequado. Para se atender aos pressuppstos da lógica formal, a definição deverá apontar o gênero próximo e a diferença especifica. Este critério era conhecido e adotado pelos antigos romanos, que já afirmavam: Definitio fit per genus proximum et differentiam specificam. O gênero próximo de uma definição deve apresentar as notas que são comuns às diversas espécies que compõem um gênero, enquanto que a diferença específica deve fornecer o traço peculiar, exclusivo, que vai distinguir o objeto definido das demais espécies. Em relação ao Direito, o gênero próximo de sua definição é constituído pelo núcleo comum aos diferentes instrumentos de controle social: Direito, Moral, Regras de Trato Social e Religião. Já a diferença específica deve apontar a característica que somente o Direito possui e, que o separa dos outros processos de conduta social. Examinando o vocábulo do ponto de vista objetivo, assim o consideramos: Direito é um conjunto de normas de conduta social, imposto coercitivamente pelo Estado, para a realização da segurança, segundo os critérios de justiça. Decompondo, em partes, vamos encontrar:
a) Conjunto de normas de conduta social: é o gênero próximo. Nesta primeira parte da definição, comum aos demais instrumentos de controle social, estão presentes dois importantes elementos: normas e conduta social. As normas definem os procedimentos a serem adotados pelos destinatários do Direito. Fixam pautas de comportamento social; estabelecem os limites de liberdade para os homens em sociedade. As proibições impostas pelas normas jurídicas traçam a linha divisória entre o lícito e o ilícito. As normas impõem obrigações apenas do ponto de vista social. A conduta exigida não alcança o homem na sua intimidade, pois este âmbito é reservado à Moral e à Religião. É fundamental, para a vida do Direito, que haja adesão aos comandos jurídicos; que as condutas sociais sigam os ditames das normas jurídicas. O Direito sem efetividade é letra morta, que existe apenas formalmente.
b) Impcsto coercitivamente pelo Estado: é a diferença específica. Apenas as normas jurídicas requerem a participação do Estado. Este controla a vidajurídica do país e, para isto, é indispensável que esteja devidamente estruturado de acordo com a clássica divisão dos poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário, que devem cumprir as funções que lhes são próprias. O comando que o Estado exerce não significa, obrigatoriamente, o monopólio das fontes criadoras do Direito. Ao Estado compete estabelecer o elenco das fontes formais e a sua hierarquia. Na dependência dos critérios adotados pelo sistema jurídico do Estado, os costumes e as decisões uniformes dos tribunais (jurisprudência) podem figurar, ao lado da lei, como elementos fontais. Assim ocorrendo, a sociedade e os tribunais, diretamente, poderão introduzir, no mundo jurídico, novas normas de conduta social. As regras de comportamento não existem apenas como enunciados submetidos à vontade de seus destinatários. Os dizeres jurídicos se revelam em uma ambiência, onde a liberdade e a força coexistem. Como ser racional e responsável, o homem deve ajustar a sua conduta, com vontade própria, aos preceitos legais. Esta atitude de espontânea adesão, contudo, não é prática comum a. todos os homens. Surge, daí, a imperiosa necessidade de o Direito ser dotado de um mecanismo de coerção, em que o elemento força se apresente em estado latente, mas apto a ser acionado nas circunstâncias próprias. A coercitividade, a cargo do Estado, é uma reserva de força que exerce intimidação sobre os destinatários das normas jurídicas.
c) Para a realização da segurança segundo os critérios de justiça:
o aparato legal deve ser considerado como instrumento, meio, recurso, colAcado em função do bem-estar da sociedade. A justiça é a causa final do Direito, a sua razão de ser. A fórmula de alcançá-la é através das normas jurídicas. Para realizar-se plenamente na sociedade, a justiça pressupõe organização, ordem jurídica bem definida e a garantia de respeito ao patrimônio jurídico dos cidadãos; em síntese, pressupõe a segurança jurídica. Assim sendo, para se chegar à justiça é necessário cultivar-se o valor segurança jurídica. No a á de se aperfeiçoarem os fatores de segurançajurídica, não se deve descurar da idéia de que a justiça é a meta, o alvo, o objetivo maior na vida do Direito. Não há, entre os filósofos do Direito, uma definição padronizada sobre ajustiça; entretanto, a idéia matriz de quase todas as concepções partiu de Ulpiano, jurisconsulto romano, que a empregou como virtude moral: lustitia est constans et perpetua voluntas ius sccum quiqcce tribuendi (a justiça é a constante e permanente vontade de dar a cada um o seu direito).

Definições Históricas do Direito

Entre as definições que se tornaram clássicas, selecionamos algumas, como exercício de análise crítica:
I. Celso, jurisconsulto romano do século I: Jus est ars boni et aequi (Direito é a arte do bom e do justo). A definição é de cunho filosófico e eticista. Coloca em evidência apenas a finalidade do objeto, o que é insuficiente para induzir o conhecimento. Costuma ser citada como exemplo de que os romanós, no plano teórico, não distinguiam o Direito da Moral. A explicação de alguns, segundo a qual a tradução correta seria "justo eqüitativo", não altera o significado da oração.

2. Dante Alighieri, escritor italiano do século XIII, em sua De Monarchia, onde expôs as suas idéias político-jurídicas, formulou a sua definição que ficou famosa: Jus est realis ac personalis hominis ad hominem proportio, quae servata societatem servate, corrupta corrumpti (Direito é a proporção real e pessoal de homem para homem que, conservada, conserva a sociedade e que, destruída, a destrói). Apontam-se três méritos nesta definição:
1º) A distinção entre os direitos reais e pessoais;
2º) a alteridade, qualidade que o Direito possui de vincular sempre e apenas pessoas, expressa nas palavras "de homem para homem";
3º) A fundamental importância do Direito, que é visto como a coluna que sustenta o edifício social. A admiração, ainda atual, decorre principalmente da época em que a definição foi elaborada. Diante das virtudes que apresenta, as deficiências que possui tornam-se opacas.

3. Hugo Grócio, jurisconsulto holandês do século XVII considerado o pai do Direito Natural e do Direito Internacional Público: "O Direito é o conjunto de normas ditadas pela razão e sugeridas pelo appetitus societatis." A presente definição carece de uma diferença especifica, de uma nota singular do Dir,eito. Revela a posição racionalista do autor, quando indica a razãBcomo entidade elaboradora das normas. Appetitus societatis (instinto de vida gregária) é o elemento motivador do Direito, que não chega a expressar os valores justiça e segurança.

4. Emmanuel Kant, filósofo alemão do século XVIII: "Direito é o conjunto das condições segundo as quais o arbítrio de cada um pode coexistir com o arbítrio dos outros, de acordo com uma lei geral de liberdade." A definição kantiana destaca o papel a ser cumprido pelo Direito. Converge-se para os resultados que ele deve apresentar. Entendemos que a expressão "conjunto das condições" não é suficiente para esclarecer o objeto. Este pode ser entendido como sendo esse núcleo capaz de gerar aqueles fins, mas é indispensável que se revelem, de forma menos abstrata, os elementos que dão estrutura ao "conjunto das condições".

5. Rudolf von Ihering, jurisconsulto alemão do século XIX: "Direito é a soma das condições de existência social, no seu amplo sentido, assegurada pelo Estado através da coação." Em seu gênero próximo, esta definição se assemelha à de Kant, pois ambas fazem referência às "condições" necessárias à vida social. Enquanto a colocação kantiana fundsmenta o Direito em um valor espiritual, a liberdade, a definição de Ihering manifesta uma tendência materialista, pois não explica a forma ou o sentido da "existência social". A nota singular do Direito, segu;ndo ojurisconsulto alemão, é a sua estadualidade (ou estatalidade) e força coativa.

Acepções da Palavra Direito


l. Considerações Prévias - Na linguagem comum e nos compêndios especializados, o vocábulo Direito é empregado em várias acepções. Saber distinguir cada um desses sentidos corresponde a uma exigência não apenas de ordem teórica, mas igualmente prática. A inconveniência dessa polissemia foi sentida por Edmond Picard que observou: "A que mal-entendidos constantes dá ocasião a homonímia entre um direito e o Direito!" Ao reclamar a falta de um vocábulo que distinguisse o Direito total de um dirQito isolado, sugeriu a formação urgente de um neoLogismo.5 Lévy-Bruhl, para evitar qualquer confusão, propôs a palavra Juristica para designar a Ciência do Direito, mas sem êxito.

2. Ciência do Direito - É comum empregar-se o vocábulo Direito como referência à Ciência do Direito. Quando se diz que "fulano é aluno de Direito", este substantivo não expressa, naturalmente, normas de conduta social, mas a ciência que as enlaça como objeto. Em lato sensu, a Ciência do Direito corresponde ao setor do cónfiecimento humano que investiga e sistematiza os conhecimentos jurídicos. Em stricto sensu, é a particularização do saberjurídico, que toma por objeto de estudo o teor normativo de um determinado sistemajurídico. É neste sentido que se fala também em Dogmática Jurídica ou Jurisprudência Técnica.

3. Direito Natural e Direito Positivo - Quando ouvimos falar em Direito, podemos associar o termo ao Direito Natural ou ao Direito Positivo, que constituem duas ordens distintas, mas que possuem reciproca convergência. O Direito Natural revela ao legislador os princípios fundamentais de proteção ao homem, que forçosamente deverão ser consagrados pela legislação, a fim de que se tenha um ordenamento jurídico substancialmente justo. O Direito Natural não é escrito, não é criado pela sociedade, nem é formulado pelo Estado. Como o adjetivo natural indica, é um Direito espontâneo, que se origina da própria natureza social do homem e que é revelado pela conjugação da experiência e razão. É constituído por um conjunto de princípios, e não de regras, de caráter universal, eterno e imutável. Como exemplos maiores: o direito à vida e à liberdade. Em contato com as realidades concretas, esses princípios são desdobrados pelo legislador, mediante normas jurídicas, que devem adaptar-se ao momento histórico Positivo é o Direito institucionalizado pelo Estado. As normas costumeiras, que se manifestam pela oralidade, constituem também Direito Positivo. As diversas formas de expressão jurídica, admitidas pelo sistema adotado pelo Estado, configuram o Direito Positivo. Assim, pode-se afirmar que, na antiga Roma, a doutrina de alguns jurisconsultos, como Ulpiano, Papiniano, Modestino, Gaio e Paulo, constituía parte do Direito Positivo daquele povo, pois condicionava as decisões prolatadas pelos pretores. Autores há que, separando a positividade da vigência, admitem como Direito Positivo não somente as normas em vigor como também aquelas que organizaram a vida no passado ejá se encontram revogadas. Em nossa opinião, embora configurem noções distintas, positividade e vigência se interdependem. ODireito, por definição, é conjunto ativo que ordena o convívio social.

4. Direito Objetivo e Direito Subjetivo - Não são duas realidades distintas, mas dois lados de um mesmo objeto. Entre ambos, não há uma antítese ou oposição. O Direito vigente pode ser analisado sob dois ângulos diferentes: objetivo ou subjetivo. Do ponto de vista objetivo, o Direito é norma de organização social. Quando se afrma que o Direito do Trabalho não é formalista, emprega-se o vocábulo Direito em sentido objetivo, como referência às normas que organizam as relações de emprego. O direito subjetivo corres onde às possibilidades ou poderes de agir, que a ordem jurídica garante a alguém corresponde a antiga colocação romana, hoje superada, do Jus Facultas Agendi. O direito subjetivo é um direito personalizado, em que a norma, perdendo o seu carater teórico, projeta-se na relaçao unica concreta. É a partir do conhecimento do Direito objetivo que , deduzimos os direitos subjetivos de cada parte dentro de uma relação jurídica

5. O Emprego do Vocábulo no Sentido de Justiça - É comum ainda observar-se o emprego da palavra Direito como referência ao que é justo. Ao se falar que "Antônio é homem direito", pretende-se dizer que ele é justo em suas atitudes.

Conceito de Ordem Jurídica

Ordem Juridica é expressão que coloca em destaque uma das qualidades essenciais do Direito Positivo, que é a de agrupar normas que se ajustam e formam um todo harmônico e coerente de preceitos. A estas qualidades José Afonso da Silva se refere como "princípio da coerência e harmonia das normas do ordenamento jurídico" e define este último como "reunião de normas vinculadas entre si por uma fundamentação unitária".' Não obstante a ordem jurídica seja um corpo normativo, quando ocorre a incidência de uma norma sobre um fato social, ali se encontra presente não apenas as norma considerada mas a ordem jurídica, pois as normas, apreciadas isoladamente, não possuem vida. A idéia de ordem pressupõe uma pluralidade de elementos que, por sua adequada posição ou função, compõem uma unidade de fim. A ordem jurídica, que é o sistema de legalidade do Estado forma-se pela totalidade das normas vigentes, que se localizam em diversas fontes e se revelam a partir da Constituiçao Federal a responsável pelas regras mais gerais e básicas à organização social. As demais formas de expressão do Direito (leis, decretos, costumes) devem estar ajustadas entre si e conjugadas àquela Lei Maior. A pluralidade de elementos que o Direito oferece compõe-se de normas jurídicas que não se acham justapostas, mas que se entrelaçam emuma conexão harmônica. A formação de uma ordemjurídica exige, pois, uma coerência lógica nos comandos jurídicos. Os conflitos entre as regras do Direito, porventura revelados, deverão ser solucionados mediante a interpretação sistemática. O aplicador do Direito, recorrendo aos subsídios da hermenêutica jurídica, deverá redefinir o Direito Positivo como um todo lógico, unidade de fim capaz de irradiar segurança e justiça. Ainda que mal elaboradas sejam as leis, com visível atraso em relação ao momento histórico; ainda que apresentem disposições contraditórias e numerosas lacunas ou omjssões, aojuristacaberá, com a aplicação de seu conhecimento científico e técnico, revelar a ordem jurídica subjacente. Em seu trabalho deverá submeter as regras à interpretação atualizadora, renovando a sua compreensão à luz das exigências contemporâneas; deverá expandir, não considerar, as regras conflitantes com outras disposições e que não se ajustem à índole do sistema; preencher os vazios da lei mediante o emprego da analogia e da projeção dos princípios consagrados no ordenamento. É falsa a idéia de que o législador entrega à sociedade uma ordem jurídica pronta e aperfeiçoada. Ele elabora as leis, mas a ordem fundamental - ordem jurídica - é obra de beneficiamento a cargo dos juristas, definida em tratados e em acordãos dos tribunais.
SOCIEDADE E DIREITO

A Sociabilidade Humana

A própria constituição física do ser humano revela que ele foi programado para conviver e se completar com outro ser de sua espécie. A prole, decorrência natural da união, passa a atuar como fator de organização e estabilidade do núcleo fámiliar. O pequeno grupo, formado não apenas pelo interesse material, mas pelos sentimentos de afeto, tende a propagar-se em cadeia, com a formação de outros 'pequenos núcleos, até se chegar à constituição de um grande grupo social. A lembrança de Ortega y Gasset, ao narrar que a História registra, periodicamente, movimentos de "querer ir-se", conforme aconteceu com os eremitas, indo para os desertos praticar a "moné" - solidão; com os monges cristãos e, ainda, nos primeiros séculos do Império Romano, com homens fugindo para os desertos, desiludidos da vida ública, não enfraquece a tese da sociabilidade humana. A experiência tem demonstrado que o homem é cápaz, durante algum tempo, de viver isolado. 0 exemplo de Robinson Crusoé serve para reflexão. Durante algum tempo, esteve isolado em uma ilha, utilizando-se de instrumenachados na embarcação. Em relação àquele personagem da ficção, is fatos merecem observações. Quando Robinson chegou à ilha, já possuía conhecimentos e compreensão, alcançados em sociedade e que muito o ajudaram naquela emergência. Além disso, o uso de instrumentos, certamente adquiridos pelo sistema de troca de riquezas, que caracteriza a dinâmica da vida social, dá a evidência de que, ainda na solidão, Robinson utilizou-se de um trabalho social. Examinando o fenômeno da sociabilidade humana, Aristóteles considerou o homem fora da sociedade "um bruto ou um deus", significando algo inferior ou superior à condição humana. O homem viveria como alienado, sem o discernimento próprio ou, na segunda hipótese, viveria como um ser perfeito, condição ainda não alcançada por ele. Santo Tomás de Aquino, estudando o me$mo fenômeno , enumerou três hipóteses para a vida humana fora da sociedade:
a) mala fortuna;
b) corruptio naturae;
c) excellentia naturae.
No infortúnio, o isolamento se dá em casos de naufrágio ou em situações análogas, como a queda de um avião em plena selva. Na alienação mental, o homem, desprovido de inteligência, vai viver distanciado de seus semelhantes. A última hipótese é a de quem possui uma grande espiritualidade, como São Simeão, chamado "Estilita" por tentar isolar-se, construindo uma alta coluna, no topo da qual viveu algum tempo. É na sociedade, não fora dela, que o homem encontra o complemento ideal ao desenvolvimento de suas faculdades, de todas as potências que carrega em si. Por não conseguir a auto-realização, concentra os seus esforços na construção da sociedade, seu habitat natural e que representa o grande empenho do homem para adaptar o mundo exterior às suas necessidades de vida.

O "Estado de Natureza"

É na sociedade que o homem encontra o ambiente propício ao seu pleno desenvolvimento. Qualquer estudo sobre ele há de revelar seu instinto de vida gregária. O pretenso "estado de natureza", em que os homens teriam vivido em solidão, originariamente, isolados uns dos outros, é mera hipótese, sem apoio na experiência e sem dignidade científica. O seu estudo, entretanto, presta-se a fins cientificos, conforme revela Del Vecchioz. Através dessa hipótese se chegará, com
argumentação a contrario, à comprovação de que fora da sociedade não há condições de vida para o homem. Acrescenta o mestre italiano que a mesma prática poderia ser adotada por um cientista da natureza, com relação, por exemplo, à lei da gravidade. Explicar as coisas do mundo, com abstração desta lei, seria um meio de demonstrar a imprescindibilidade desta.

Formas de Interação Social e a Ação do Direito

1. A Interação Social - As pessoas e os grupos sociais se relacionam estreitamente, na busca de seus objetivos. Os processos de mútua intluência, de relações interindividuais e intergrupais, que se formam sob a força de variados interesses, denominam-se interapão social. Esta pressupõe cultura e conhecimentpfdas diferentes espécies de normas de conduta adotadas pelo corpo social. Na relação interindividual, em que o ego e o alter se colocam frente a frente, com as suas pretensões, a noção comum dos padrões de comportamento e atitudes é decisiva à natural fluência do fato. O quadro psicológico que se apresenta é abordado, com agudeza, por Parsons e Shills: "como os resultados da ação do ego dependem da reação do altruismo, do ego orienta-se'não apenas pelo provável comportamento manifesto do altruismo, mas também pela interpretação que faz das expectativas do altruismo com relação a seu comportamento, uma vez que o ego espera que as expectativas do alter influenciarão o seu comportament0." A interação social se apresenta sob as formas de cooperação, competição e conflito e encontra no Direito a sua garantia, o instrumento de apoio que protege a dinâmica das ações. Na cooperação as pessoas estão movidas por um mesmo objetivo e valor e por isso conjugam o seu esforço. A interação se manifesta direta e positiva. Na competição há uma disputa, uma concorrência, em que as partes procuram obter o que almejam, uma visando a exclusão da outra. Uma das grandes características da sociedade moderna, esta forma revela atividades paralelas, em que cada pessoa ou grupo procura reunir os melhores trunfos, para a consecução de seus objetivos. A interação, nesta espécie, se faz indireta e, sob muitos aspectos, positiva. O conflito se faz presente a partir do impasse, quando os interesses em jogo não logram uma solução pelo diálogo e as partes recorrem à luta, moral ou física, ou buscam a mediação da justiça. Podemos defini-lo como oposição de interesses, entre pessoas ou grupos, não conciliados pelas normas sociais. No conflito a interação é direta e negativa. O Direito só irá disciplinar as formas de cooperação e competição onde houver relação potencialmente conflituosa. Os conflitos são fenônemos naturais à sociedade, podendo-se até dizer que lhe são imanentes. Quanto mais complexa a sociedade, quanto mais se desenvolve, mais se sujeita a novas formas de conflito e o resultado é o que hoje se verifica, como alguém afirmou, em que "o maior desafio não é o de como viver e sim o da convivência". Conforme Anderson e Parker analisam, as formas de ação social não costumam desenvolver-se dentro de um único tipo de relacionamento, pois "na maior parte das situações estão intimamente ligadas e mutuamente relacionadas de diversas formas". De fato, tal fenônemo ocorre, por exemplo, com empresas concorrentes que, no âmbito de um determinado departamento, firmam convênio para o desenvolvimento de um projeto de pesquisa, ou se unem a fim de pleitear um benefício de ordem fiscal. Na opinião dos dois sociólogos norte-americanos "nenhuma forma de ação é mais importante para a dinâmica da sociedade do que outra", não obstante reconheçam que uma pode ser mais desejável do que a outra. Em abono à presente opinião, é de se lembrar a tese do jurisconsulto alemão, Rudolf von Lhering, para quem a "luta" sempre foi, no desenrolar da história, um fator de propulsão das idéias e instituições jurídicas.

2. O Solidanrismo Social - Léon Duguit, no setor da Filosofia do
Direito, desenvolveu uma importante teoria em relação à interação
social por cooperação, no primeiro quartel do atual século. Baseando
os seus estudos no pensamento do sociólogo Émile Durkheim, que
dividiu as formas de solidariedade social em "mecânica" e "orgâni-
ca"," Léon Duguit estruturou a sua concepção a partir desse ponto .
substituindo, porém, essas denominações com a "por semelhança" e
"por divisão do trabalho", respectivamente. Consideramos a expres-
são entrosamento social mais adequada, em virtude de que a palavra
solidariedade implica uma participação consciente numa situação
alheia, animus esse que não preside todas as formas de relacionamento
social. O motorista de praça, que conduz um passageiro ao seu destino,
não age solidariamente ao semelhante, verificando-se, tão-somente,
um entrosamento de interesses.
A solidariedade por semelhança caracteriza-se pelo fato de que
os membros do grupo social conjugam seus esforços em um mesmo
trabalho. Miguel Reale exemplifica esta modalidade: "podemos lem-
brar o esforço conjugado de cinco ou dez indivíduos para levantar um
bloco de granito. Este é um caso de coordenação de trabalho, que tem
como resultado uma solidariedade mecânica."' Esta forma foi mais
desenvolvida no início da civilizaçrhumana e é a espécie que
predomina entre os povos menos desenvolvidos. Na solidariedade por
divisão do trabalho a atividade global da sociedade é racionalizada e
divididas as tarefas por natureza do serviço. Os homens desenvolvem
trabalhos diferentes e beneficiam-se mutuamente da produção alheia,
mediante um sistema de troca de riquezas. Por essa diversificação de
atividades, as tendências e vocações tendem a realizar-se.
Um plano de elaboração conjunta de um anteprojeto de código,
que pressupõe o trabalho solidário de juristas, pode consagrar uma ou
outra forma de solidariedade, havendo, inclusive, a possibilidade da
adoção das duas concomitantemente. Esta última hipótese se configu-
raria quando, dividido o trabalho global em partes, cada uma destas
ficasse confiada a um grupo que estudaria em conjunto.
A estrutura da sociedade, na teoria de Léon Duguit, estaria no
pleno desenvolvimento das formas de solidariedade social. O Direito




se revelaria como o. agente capaz de garantir a solidariedade social,
seu fundamento, e a lei seria legítima enquanto promovesse tal tipo de
interação social.

3. A Apão do Direito - O Direito está em função da vida social.
A sua finalidade é a de favorecer o amplo relacionamento entre as
pessoas e os grupos sociais, que é uma das bases do progresso da
sociedade. Ao separar o lícito do ilícito, segundo valores de convivên-
cia que a própria sociedade elege, o ordenamento jurídico torna
possíveis os nexos de cooperaão, e disciplina a competipão, estabe-
lecendo as limitações necessárias ao equilíbrio e àjustiça nas relações.
Em relação ao conflito, a ação do Direito se opera em duplo
sentido. De um lado, preventivamente, ao evitar desinteligências
quanto aos direitos que cada parte julga ser portadora. Isto se faz
mediante a exata definição do Direito, que deve ter na clareza, simpli-
cidade e concisão de suas regras, algumas de suas qualidades. De outro
lado, diante do conflito concreto, o Direito apresenta solução de
acordo com a natureza do caso, seja para definir o titular do direito ,
determinar a restauração da situação anterior ou aplicar penalidades
de diferentes tipos. O silogismo da sociabilidade expressa os elos que
vinculam o homem, a sociedade e o Direito: Ubi homo, ibi societas;
ccbi societas, ibi jus; ergo, Nbi hono, ibi jus (onde o homem, aí a
sociedade; onde a sociedade, aí o Direito; logo, onde o homem, aí o
Direito).
Cenário de lutas, alegrias e sofrimentos do homem, a sociedade
não é simples aglomeração de pessoas. Ela se faz por um amplo
relacionamento humano, que gera a amizade, a colaboração, o amor,
mas que promove, igualmente, a discórdia, a intolerância, as desaven-
ças. Vivendo em ambiente comum, possuindo idênticos instintos e
necessidades, é natural o aparecimento de conflitos sociais, que vão
reclamar soluções. Os litígios surgidos criam para o homem as neces-
sidades de segurança e de justiça. Mais um desafio lhé é lançado: a
adaptação das condutas humanas ao bem comum. Como as necessida-
des coletivas tendem a satisfazer-se, ele aceita o desafio e lança-se ao
estudo de fórmulas e meios, capazes de prevenirem os problemas, de
preservarem os homens, de estabelecerem paz e harmonia no meio
social. O Direito se manifesta, assim, como um corolário inafastável
da sociedade.


A sociedade sem o Direito não resistiria, seria anárquica, teria
o seu fim. O Direito é a grande coluna que sustenta a sociedade.
Criado pelo homem, para corrigir a sua imperfeição, o Direito repre-
senta um grande esforÇo, para adaptar o mundo exterior às suas
necessidades de vida.


13. A Mútua Dependência entre o Direito e a Sociedade

1. Fato Social e Direito - Direito e sociedade são entidades
congênitas e que se pressupõem. O Direito não tem exÌstência em si
próprio. Ele existe na sociedade. A sua causa material está nas relações
de vida, nos acontecimentos mais importantes para a vida social. A
sociedade, ao mesmo tempo, é fonte criadora e área de ação do Direito,
seu foco de convergência. Existindo em função da sociedade, o Direito
deve ser estabelecido à sua imagem, conforme as suas peculiaridades,
refletindo os fatos sociais, que significam, no entendimento de Émile
Durkheim, "maneiras de agir, de pensar e de sentir, exteriores ao
indivíduo, dotadas de um poder de coerção em virtude do qual se Ihe
impõem" .R
Fatos sociais são criações históricas do povo, que refletem os
seus costumes, tradições, sentimentos e cultura. A sua elaboração é
lenta, imperceptível e feita espontaneamente pela vida social. Costu-
mes diferentes implicam fatos sociais diferentes. Cada povo tem a sua
história e seus fatos sociais. O Direito, como fenômeno de adaptação
social, não pode formar-se alheio a esses fatos. As normas jurídicas
devem achar-se conforme as manifestações do povo. Os fatos sociais,
porém, não são as matrizes do Direito. Exercem importante influência,
mas o condicionamento não é absoluto. Nem tudo é histórico e con-
tingente no Direito. Ele não possui apenas um conteúdo nacional,
como adverte Del Vecchio. A natureza social do homem, fonte dos
grandes princípios do Direito Natural, deve'orientar as "maneiras de
agir, de pensar e de sentir do povo" e dimensionar todo o jus positum.
Falhando a sociedade, ao estabelecer fatos sociais contrários à nature-
za social do homem, o Direito não deve acompanhá-la no erro. Nesta


hipótese, o Direito vai superar os fatos existentes, impondo-lhes
modificações.
2. O Papel do Legislador - O Direito é criado pela sociedade
para reger a própria vida social. No passado, manifestava-se exclusi-
vamente nos costumes, quando era mais sensível à influência da
vontade coletiva. Na atualidade, o Direito escrito é forma predominan-
te, malgrado alguns países, como a Inglaterra, Estados Unidos e alguns
povos muçulmanos, conservarem sistemas de Direito não escrito. O
Estado moderno dispõe de um poder próprio, para a formulação do
Direito - o Poder Legislativo. A este compete a difícil e importante
função de estabelecer o Direito.

Semelhante ao trabalho de um sismógrafo, gue acusa as vibra-
ções havidas no solo, o legislador deve estar sensivel às mudanÇas
sociais, registrando, nas leis e nos códigos, o novo Direito.

Atento aos reclamos e imperativos do povo, o legislador deve
captar a vontade coletiva e transportá-la para os códigos. Assim
formulado, o Direito não é produto exclusivo da experiência, nem
conquista absoluta da razão. O povo não é seu único autor e o legislador
não extrai exclusivamente de sua rzo os modelos de conduta. O
concurso dos dois fatores é indispensável à concreção do Direito. Este
pensamento é confirmado por Edgar Bodénheimer, quando afirma
que ` `seria unilateral a afirmação de que só a razão ou só a experiência
como tal nos deveriam guiar na administração da justiça".y
No presente, o Direito não representa somente instrumento de
disciplinamento social. A sua missão não é, como no passado, apenas
a de garantir a segurança do homem, a sua vida, liberdade e patrimô-
nio. A sua meta é mais ampla, é a de promover o bem comum, que
implica justiça, segurança, bem-estar e progresso. O Direito, na atua-
Iidade, é um fator decisivo para o avanço social. Além de garantir o
homem, favorece o desenvolvimento da ciência, da tecnologia, da
produção das riquezas, o progresso das comunicações, a elevação do
nível cultural do povo, promovendo ainda a formação de uma cons-
ciência nacional.
O legislador deste final de século não pode ser mero espectador
do panorama social. Se os fatos caminham normalmente à frente do



Direito, conforme os interesses a serem preservados, o legislador
deverá antecipar-se aos fatos. Ele deve fazer das leis uma cópia dos
costumes sociais, com as devidas correções e complementações. O
volksgeist deve informar às leis, mas o Direito contemporâneo não é
simples repetidor de fórmulas sugeridas pela vida social. Se de um
lado o Direito recebe grande influxo dos fatos sociais, provoca, igual-
mente, importantes modificações na sociedade.Quando da elaboração
da lei, o legislador haverá de considerar os fatores histórico, ncttural
e cientifico e a sua conduta será a de adotar, entre os vários modelos
possíveis de lei, aquele que mais se harmonize com os três fatores.
Earl Warren, na presidência da Suprema Corte Norte-Americana,
salientou a importância do Direito para o progresso e segurança dos
povos: "A história tem demonstrado que onde a lei prevalece, a
liberdade individual do Homem tem sido forte e grande o progresso.
Onde a lei é fraca ou inexistente, o caos e o medo imperam e o
progresso humano é destruído ou retardado"."'
As transformações que o mundo atual experimenta, no setor
científico e tecnológico, vêm favorecendo as comunicações humanas,
tão precárias no passado. O mundo caminha para transformar-se numa
grande aldeia. O desenvolvimento das comunicações entre povos
distantes e de diferentes origens provocar  fenômeno da acctlturaão
e, em conseqüência, a abertura de um caminho para a unificação dos
fatos sociais e uma tendência para a universalidade do Direito. A
unificação absoluta, tanto dos fatos sociais quanto do Direito, será
inalcançável, em face da permanência de diversidades culturais.
A EFICÁCIA DA LEI NO TEMPO E NO ESPAÇO

Sumário: I35. Vigência e Revogação da Lei. 136. O Conflito de Leis no
Tempo. 137. O Principio da Irretroatividade. 138. Teorias sobre a Irre-
troatividade. I39. A Noção do Conflito de Leis no Espaço.140. O Estran-
geiro perante o Direito Romano.141. Teoria dos Estatutos.142. Doutrinas
Modernas quanto à Êxtraterritorialidade.143. O Direito Interespacial e o
Sistema Brasileiro.

135. Vigência e Revogação da Lei

Na vida do Direito a sucessão de leis é ato de rotina. Cada estatuto
legal tem o seu papel na história. Surge como fórmula adequada a
atender às exigências de uma época. Para isto combina os princípios
modernos da Ciência do Direito com os valores que a sociedade
consagra. O conjunto normativo é preparado de acordo com o modelo
fático, em consonância com a problemática social que se desenrola.
Com a promulgação, a lei passa a existir, mas o início de sua vigência
é condicionado pela chamada vacatio legis. Pelo sistema brasileiro, a lei
entra em vigor em todo o País quarenta e cinco dias após a sua publicação.
Esse prazo é apenas uma regra geral. Conforme a natureza da lei, o
legislador pode optar por um interregno diferente ou até suprimi-lo. '
Quando a aplicação da lei brasileira for admitida no estrangeiro, a vacatio
legis será de três meses. Tais disposições estão inseridas no art. I o da Lei
de Introdução ao Código Civil brasileiro.
A lei começa a envelhecer a partir de seu nascimento. Durante a
sua existência, por critéios hermenêuticos, a doutrina concilia o texto
com os novos fatos e aspirações coletivas. Chega um momento, porém,
em que a lei se revela imprópria para novas adaptações e a sua
substituição por uma outra lei torna-se um imperativo. O tempo de


duração de uma lei é variável. Algumas alcançam a longevidade, como
a Constituição norte-americana de I787, o Code Napoléon, de 1804, o
Código Comercial brasileiro, de 1850, ainda vigentes. Outras apresen-
tam um período de duração normal e não arrastam a sua vigência
artificialmente, como ocorre com as legislações citadas, que sofreram
numerosas transformações, que desfiguraram a sua fisionomia original.
Algumas há que podem ser chamadas de natimortas, de ocorrência
excepcional, de que é exernplo o Código Penal brasileiro de 1969,
revogado durante a sua vacatio legis.
A perda de vigência pode ocorrer nas seguintes hipóteses: a)
revogação por outra lei; b) decurso do tempo; c) desuso (matéria que
envolve controvérsia doutrinária e que foi objeto de nosso estudo no
capítulo XVI). A revogação de uma lei por outra pode ser total ou
parcial. No primeiro caso denortiina-se ab-rogação e no segundo,
derrogação. Esta divisão foi elaborada pelos romanos, que distingui-
ram ainda a sub-rogação, que consistia na inclusão de outras disposi-
ç o,
ões em uma lei existente e a modificaÇã que era a substituição de
parte de uma lei anterior por novas disposições.'
A revogação da lei pode ser expressa ou tácita. Ocorre a primeira
hipótese quando a lei nova determina especificamente a revogação da
lei anterior. A revogação tácita se opera sob duas formas: a) quando a
lei nova dispõe de maneira diferenÌe sobre assunto contido em lei
anterior, estabelecendo-se assim um conflito entre as duas ordenações.
Este critério de révogação decorre do axioma lex posterior derogat
priorem (a lei posterior revoga a anterior); b) quando a lei nova
disciplina inteiramente os assuntos abordados em lei anterior. É prin-
cípio de hermenêutica, porém, que a lei geral não revoga a de caráter
especial. Quando uma lei revogadora perde a sua vigência, a lei ,
anterior, por ela revogada, não recupera a sua validade. Esse fenômeno
de retorno à vigência, tecnicamente designado por repristinação, é
condenado do ponto de vista teórico e por nosso sistema.
No Direito brasileiro, conforme dispõe o art. 2o da Lei de Intro-
dução ao Código Civil, vigoram os seguintes preceitos quanto à revo-
gação:
"Art. 2o Não se destinando à vigência temporária, a lei terá
vigor até que outra a modifique ou revogue.


§ la A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o i..:,
declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule
inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.

§ 2o A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais
a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.

§ 3o Salvo disposições em contrário, a lei revogada não se
restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência."


136. O Contlito de Leis no Tempo


Quando um fato jurídico se realiza e produz todos os seus efeitos
sob a vigência de uma determinada lei, não ocorre o conflito de leis no
tempo. O problema surge quando um fatojurídico, ocorrido na vigência
de uma lei, estende os seus efeitos até a vigência de uma outra. A
questão fundamental passa a girar em torno desta indagação: Qual a lei
aplicável aos efeitos do fato jurídico a da época em que se realizou ou
a do tempo em que vai produzir seus efeitos? Os princípios que regem
essa matéria constituem o chamado Direito Intertenlporal. Este assunto
é abordado também sob os títulos "o conflito de leis no tempo" e "a
eficácia da lei no tempo".
Para facilitar a nossa compreensão, figuremos um exemplo práti-
co: ao ingressar na Faculdade de Direito o acadêmico encontra em vigor
um deterininado currículo e por ele começa o seu curso; caso não ocorra
qualquer alteração no elenco das disciplinas, não irá deparar com
problemas curriculares. Mas, se durante o seu curso sobrevier um novo
currículo, várias perguntas surgirão: a) o acadêmico terá direito a
prosseguir no seu estudo e formar-se de acordo com o currículo antigo?
b) deverá o aluno seguir inteiramente as novas disposições, como se
não houvesse o currículo anterior? c) o currículo novo respeitará os
créditos alcançados pelo acadêmico e este deverá adaptar-se às novas
exigências? É evidente que a resolução que aprova um novo currículo
evita essa ordem de interrogações, por suas disposições transitórias,
que definem as situações anteriores. Mas acima dessas normas transi-
tórias, no ordenamento jurídico vigente, há algumas disposições perti-
nentes ao Direito Intertemporal que devem ser consideradas.
292 PAULO NADER

137. O Princípio da Irretroatividade


O princípio da irretroatividade, pelo qual uma lei nova não alcança
os fatos produzidos antes de sua vigência, não é uma criação moderna.
,
No Direito Romano já prevalecia como critério básico não respeitado
apenas quando uma lei especificamente determinasse que as suas
normas alcançassem os assuntos pendentes. Do Direito Romano esse
princípio passou para o Direito Canônico, consagrado por Gregório
IX. A sua teorização, contudo, desenvolveu-se apenas a partir do século
XIX, com a propagação do pensamento liberal.
A Constituição norte-americana de 1787, na seção 5a de seu art.
lo, dispôs a respeito: "O Congresso não poderá editar nenhuma lei com
efeito retroativo." Em seu art. 2o, o Código Napoleão também consa-
grou o princípio: "A lei só dispõe para o futuro; não tem efeito retroati-
vo." Todas as Constituições brasileiras, à exceção da Carta de 1937,
estabeleceram o princípio da não-retroatividade. A Constituição vigen-
te o incluiu no elenco "Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos",
pelo item XXXVI, do art. 5o: "A lei não prejudicará o direito adquirido,
o atojurídico perfeito e a coisajulgada." Em matéria criminal, consoan-
te dispõe o item XL daquele artigo, a lei penal não retroagirá, "salvo
para beneficiar o réu". A nossa lei ordinária dispõe que "a 1ei em vigor
terá efeito imediato e geral, respeitados o atojurídico perfeito, o direito
adquirido e a coisajulgada".= Não são todas as legislações que situam
o princípio ao nível de constituição, de que é exemplo o Direito chileno.
Sob o fundamento de que a lei nova traduz os novos anseios
sociais, é fórmula aperfeiçoada de justiça, alguns já defenderam a tese
de que a lei nova deveria ter aplicação retroativa, isto é, não apenas ser
aplicada ao presente, mas igualmente aos fatos pretéritos. Quando

2 Este é o teor do capur do art. 6o da Lei de Introdução. O legislador brasileiro não se
fixou em uma determinada teoria apenas. Ao mencionar efeitn imediatn, influenciou-se
pela teoria de Paul Roubier; com a expressão direitn adquiridn, aproveitou o subsídio da
teoria clássica. Os §§ lo e 2o do art. 6" definem, repectivamente, os conceitos de ato
jurídicn perfeito e dir-eitos ndquiridos: "§ lo Reputa-se ato jurídico perfeito o já
consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou": " 2o Consideram-se
adquiridos assim os direitòs que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como
aquele cujo começo do exercício tenha termo prefixo, ou condição preestabelecida
inalterável, a arbítrio de outrem." Já o § 3o define coisa julgada como "a decisão judicial
de que já não caiba recurso".
No estudamos os princípios de segurança jurídica, verificamos que a irre-
troatividade da lei é fator de grande importância na proteção do indiví-
duo; que é uma garantia contra a arbitrariedade; que é um princípio de
natureza moral. Se fosse admitida a retroatividade como princípio
absoluto, não haverig o Estado de Direito, ncas o império da desordem.
O princípio da irretroatividade como re ra
, g geral, e consagrado na
doutrina e pela generalidade das legislações. Para Clóvis Beviláqua, "o
princípio da não-retroatividade é, antes de tudo, um preceito de política
jurídica. O direito existente deve ser respeitado tanto quanto ã sua
persistência não sirva de embaraço aos fins culturais da sociedade, que
a nova lei pretende satisfazer."3 Não concordamos com o embasamento
coletivista consignado por Clóvis. O fundamento natural e primátio da
irretroatividade é a preservação da segurançajurídica do indivíduo.
Quanto ao conflito de leis no tempo, é pacífico, atualmente, que
a lei não deve retroagir. O que até hoje não se conseguiu foi encontrar-se
"uma fórmula única e geral, aplicável a todos os aspectos do conflito
das leis no tempo".4 A doutrina, de uma forma harmônica, apresenta as
seguintes orientações:
Admite-se a retroatividade da lei:
a) no Direito Penal, quando as disposições novas beneficiam aos
réus na exclusão do caráter delituoso o ato ou no sentido de minorarem
a penalidade;
b) no tocante às leis interpretativas;5
c) quanto às leis abolitivas, que extinguem instituições sociais ou I
jurídicas, incompatíveis com o novo sentimento ético da sociedade
como ocorreu com a abolição da escravatura. 6
Admite-se o efeito imediato da nova lei:
a) em relação às normas precessuais;
b) quanto às normas cogentes ou taxativas, como as de Direito de
Família;




c) quanto às normas de ordem pública;
d) quanto ao Direito das Obrigações, no tocante às regras impe-
rativas.
Em relação ao Direito das Sucessões, prevalecem as normas
vigentes no momento da abertura da sucessão e, quanto ao testamento,
as normas da época em que foi efetuado.


l38. Teorias sobre a Irretroatividade

Entre as principais teorias que abordam o conceito e a caracteri-
zação da irretroatividade da lei, destacam-se as seguintes:

1. Doutrina Clássica ou dos Direitos Adquiridos - Esta teoria foi
concebida inicialmente pelos juristas da Escola da Exegese, sendo
Blondeau o seu primeiro expositor, no início do século passado. Foi
com Chabot, que distinguiu o direito adquirido da simples expecta-
tiva, e com Merlin, que a teoria recebeu lineamentos mais amplos e
científicos.
Essa teoria parte de uma distinç,ão entre faculdade, expectativa e
direito adquirido. A faculdade foi conceituada como a possibilidade
jurídica de se praticar atos, como o de emancipação de filho, por
exemplo. A expectativa não passa de uma esperança, como Merlin
situou, de se adquirir um direito caso venha a realizar-se um aconteci-
mento futuro, que lhe dará efetividade. É a situação em que se encontra
uma pessoa, por exemplo, em relação à herança de um parente próximo,
tendo em vista o que dispõe a legislação vigente. Diante da circunstân-
cia da época, não há que se falar ainda de direito sucessório, mas apenas
expectativa que se transformará em direito caso não haja alteração na
ordem suCessória e o fato venha a se consumar. Segundo Merlin,
"direitos adquiridos são aqueles que entraram em nosso domínio e, em
conseqüência, formam parte dele e não podem ser desfeitos..."' Exem-
plo: o funcionário público que atinge cinco anos de serviço público,
sem falta ao trabalho, adquire o direito de gozar licença-prêmio. Se-
gundo essa teoria, não se caracteriza a retroatividade quando a lei atinge
apenas uma faculdade ou expectativa. A lei nova terá que respeitar


sempre o direito adquirido, aquele já consolidado e que ainda não foi
gozado, mas cujo exercício depende exclusivamente de iniciativa de
seu titular. I

2. Teoria da Situação Juridica Concreta - Situação jurídica é a
posição de uma pessoa em relação à lei. Bonnecase parte da distinção
entre situação jurídica abstrata e concreta. A primeira se caracteriza
quando a pessoa não é alcançada pela regraJ o fato jurídico que a
colocaria sob os efeitos da lei não se realizou. E a condição do solteiro,
por exemplo, em relação à instituição do matrimônio. A situação
jurídica concreta é definida por Bonnecase como "a maneira de ser de
uma pessoa determinada, derivada de um ato ou de um fatojurídico que
a faz atuar, em seu proveito ou contra si; as regras de uma instituição
jurídica, e a qual ao mesmo tempo lhe tem conferido efetivamente as
vantagens e as obrigações inerentes ao funcionamento dessa institui-
ção"." Situa-se, nesta hipótese, o indivíduo casado em relação à lei do
casamento. Para o autor dessa teoria somente se caracteriza a retroati-
vidade quando a lei nova alcança a situação jurídica concreta, o que por
ele não é admitido.

3. Teoria dos Fatos Cumpridos - Exposta por Windscheid, Dern-
burg e Ferrara, o importante para ess'á concepção não é a verificação
da existência de direito adquirido, mas a constatação se o fato foi
cumprido durante a vigência da lei anterior. De acordo com a orientação
de seus expositores, haveria retroatividade apenas quando o ato legislativo
atingisse o fato jurídico realizado no passado, desfazendo-o ou alterando
os seus efeitos produzidos na vigência da lei revogada.

4. Teoria de Paul Roubier - O jurista francês partiu da distinção
dos possíveis efeitos da lei em relação ao tempo: a) efeito retroativo
(ação sobre atos e fatos do passado); b) efeito imediato (ação apenas
sobre o presente); c) efeito diferido (quando a lei vai alcançar o futuro).
Para o autor da teoria o ponto capital do problema radica na distinção
entre efeito retroativo e efeito ímediato. Em seu entendimento a lei
somente deve alcançar os fatos do presente, respeitando os fatos preté-
ritos. Igualmente não admite que a lei estenda os seus efeitos sobre o
futuro.



5. A Concepção de Planiol - Análogo à tese de Paul Roubier é o
critério proposto por Planiol: "A lei é retroativa quando atua sobre o
passado, seja para apreciar as condições de legalidade de um ato, seja
para modificar ou suprimir os efeitos de um direito já realizado. Fora
de tais casos não há retroatividade, e a lei pode modificar os efeitos
futuros de fatos ou de atos anteriores, sem ser retroativa."9

6. O Principio "Ratione Materiae" - Ao disciplinar o problema
da irretroatividade da lei, o sistemajurídico pode optar pela adoção de
determinadas teorias, fixando-se assim em princípios gerais e abstratos,
como o fez o legislador brasileiro, ou optar pelo princípio ratione
materiae, isto é, pela particularização de assuntos. Entre os códigos que
seguem essa orientação encontram-se os da Alemanha, Suíça e Itália.


139. A Noção do Contlito de Leis no Espaço

Enquanto o conflito de leis no tempo se configura pela existência
de duas leis nacionais, promulgadas em épocas distintas e que regulam
uma igual ordem de interesses, o cpnflito de leis no espaço caracteri-
za-se pela concorrência de leis pertencentes a diferentes Estados sobe-
ranos em decorrência da mobilidade do homem entre os territórios. Da
mesma forma que não haveria o primeiro tipo de conflito se todos os
fatos fossem unitemporais, isto é, se formassem e produzissem os seus
efeitos sob o império de uma só lei, não haveria o segundo tipo de
conflito se todos os fatos jurídicos fossem uniespaciais, ou seja, caso ·
se consumassem integralmente em um só Estado, sob a vigência de um .·
sistema único. As normas e princípios que visam à solução do
conflito de leis no espaço formam o chamado Direito Interespacial
que, ao lado do Direito Intertemporal, são denominados superdi-
reitos, de vez que não criam normas de conduta social, mas apenas
indicam o sistemajurídico aplicável a determinada relação de direito.
Entre os princípios básicos que o Direito Interespacial apresenta,
o da territorialidade (lex nnn valet extra territorium) significa que a lei
a ser aplicada é a do território, vedada, pois, a efetividade do Direito
estrangeiro. O da extraterritorialidade (personalidade da lei) corres-

onde à admissão da vigência de lei forânea, em um Estado, sobre
determinada matéria. Há dois critérios para a adoção deste princípio: o i
Estado pode adotar a lei da nacionalidade do estrangeiro ou a de seu
domicilio.
Esse tipo de problema surgiu em um determinado estádio de I
evolução da humanidade. Entre os povos primitivos não havia como se
cogitar do conflito de leis no espaço, porque os homens viviam confi-
nados na base territorial de seus Estados. Como não havia a fi ra do
estrangeiro, apenas um sistema jurídico poderia ser aplicado nas rela-
ções interindividuais: o Direito autóctone. Um conjunto de fatores
porém, veio a favorecer o intercâmbio entre os povos: de um lado a
ampliação dos conhecimentos geográficos e o aperfeiçoamento da
navegação marítima e, de outro, a vontade de conhecer, a ambi ão o
ç ,
espírito de aventura, os interesses econômicos. O princípio da territo-
rialidade teria que sofrer limitações, sob pena de impedir a mobilidade
do homem entre os Estados. Os problemas de natureza jurídica come-
çaram a surgir e as soluções foram ditadas em iricam
p ente. A necessi-
dade de se admitir a aplicação da lei forânea em território nacional não I.
era motivada apenas pelo interesse de proteção ao estrangeiro, mas
também para que houvesse reciprocidade de tratamento quanto aos seus
nacionais, em terras estranhas. ,,
Ì
Teoricamente a solução poderia ser encontrada conforme Agenor
,
Pereira de Andrade menciona, pela unificação do Direito Privado.'
Essa fórmula, mais tarde sugerida por Jitta, internacionalista holandês ,
além de difícil execução, do ponto de vista da teoria do Direito signi-
ficaria apenas a eliminação do problema."


14Q. O Estrangeiro perante o Direito Romano

A sistemática adotada pelo Direito Romano em relaão ao estran-
geiro não dava margem ao surgimento de conflito de leis no espaço. Ao
lado do Jus Civile destinado aos cidadãos romanos, cives, e aplicado

10 Agenor Pereira de Andrade, Manua! de Direito lnternaciona! Privado, 4' ed.,
Sugestões Literárias S/A, São Paulo, 1983, p. 21.
11 Para o internacionalista Agenor Pereira de Andrade, a uni icação do Direito mundial
não se afgura como tarefa inatingível: "Cremos que o direito uniforme acabarã um dia
por alcançar os Estados, envolvendo os países do mundo. Entretanto, julgamos ser esse
dia ainda muito remoto" (op. cit., p. 22).


pelo pretor urbano, havia o Jus Centium, ordenamento que disciplinava
as relações entre os estrangeiros em suas relações recíprocas e com os
cives. Ao pretor peregrino incumbia a aplicação do Direito das Gentes.
Conforme Agenor Pereira de Andrade observa, ainda quando se apli-
cava o jus peregrinorum, Direito de origem do estrangeiro, para preen-
cher as lacunas do Jus Centium, não se configurava a hipótese de
conflito de leis. iz '
Para que o Jus Centium refletisse ao máximo o espírito cosmopo-
lita, esse ordenamento era composto por normas e princípios adotados
pela generalidade das nações. O seu caráler universal levou o juriscon-
sulto Gaio a identificá-lo com o Direito Natural.
Um edito de Caracalla, no ano 21 Z (d.C.), concedendo a cidadania
aos estrangeiros, pôs termo à dualidade de sistemas jurídicos.
Quando os bárbaros invadiram o Império Romano, provocando a
sua ruína, trouxeram consigo os seus costumes e o seu Direito, mas
respeitaram o Direito Romano, que se aplicava aos antigos habitantes
da região.'3 Estabeleceu-se, em Roma, o princípio da personalidade da
lei, pelo qual o indivíduo ficaria subordinado ao Direito de sua origem.
Instituiu-se, então, o chamado professio juris, prática pela qual o juiz
perguntava à parte: sub qua lege vives? O juigamento se processava,
então, pela lei da pessoa. Entre os inonvenientes desse regime estava
a impossibilidade de se organizar, conforme frisa Abelardo Torré, a
propriedade imóvel e o sistema policial, que exigiam uniformidade de
procedimentos.
Durante o período feudal, que se instituiu na Europa, no século
IX, após a morte de Carlos Magno, prevaleceu o princípio da territo-
rialidade absoluta. Sob esse regime não havia possibilidade, também,
para o surgimento de conflito de leis no espaço. .


141. Teoria dos Estatutos

Ao final da Idade Média, no século XIII, a necessidade de se
fixarem critérios mais precisos para a solução do conflito de leis no


espaço, em face do crescente intercâmbio comercial, industrial e inte-
lectual entre os povos, levou alguns juristas a desenvolverem o chama-
do sistema dos estatutos, inicialmente ao norte da Itália.'4 Esse movi- l
mento doutrinário, apesar de girar um torno de um só bjetivo, dividiu-
se em várias escolas como a italiana do século XIII, formada pelos
glosadores e pós-glosadores; a francesa do século XVI, que teve em
D'Argentré, Dumoulin e Guy Coquile, seus principais nomes; a holan-
desa do séc. XVII constituída elos 'uristas P
p  aulo, Joao Voet, UIrIch
Huber, além de outros.
Entre os nomes de maior projeção, destacou-se o de Bártolo de
Saxoferrato (1314-1357), que sistematizou a teoria dos estatutos, em
seu livro Conflito de Leis que, durante vários séculos, serviu de orien-
tação aos povos.'5 O método que adotou foi o de considerar a natureza
da relação jurídica e estabelecer princípios adequados de justiça para
cada categoria. As regras básicas que indicou foram as seguintes: as
questões relativas aos bens e aos delitos seriam regidas pela lei do Iocal;
os problemas de família, pelas normas do domicilio do pai ou do
marido; a celebração dos atos jurídicos, de acordo com a lei do local,
enquanto que os seus efeitos ficariam subordinados à do território.
No século XVIII a escola holandesa sustentou que o fundamento
para a admissão da lei extraterritorial pão era o princípio dejustiça, mas
a cortesléccprolcam  t Ìitate  da na utilidade recíproca (comitas gen-
tccm ob r
As regras gerais para a solução do conflito de leis no espaço foram
sistematizadas pela teoria estatutária, por divisão de matéria, distribuí-
da em três estatutos:
a) estatutos pessoais: referiam-se à capacidade, nome, estado
civil, Direito de Família. O princípio aplicável era o da extraterritoria-
lidade, de acordo com o domicílio da pessoa;
b) estatutos reais: relacionavam-se aos bens e o princípio a que
se submetiam era o da territorialidade (lex rei sitae);



14 Ao longo dos séculos X1I e XII(, designavam-se por e.statutos os regulamentos
jurídicos que vigoravam nas províncias ou municípios de alguns Estados Europeus.
15 Quanto ao prestígio e fama alcançados por Bártolo, o jurista Laurent fez o seguinte
comentário: "Chamaram-no, alguns, o pai do Direito, outros, a lâmpada da Lei. Disseram
que a substância mesma da verdade encontrava-se em suas obras, e que advogados ejuízes
não poderiam fazer melhor do que seguir suas opiniões." Apuá Agenor Pereira de Andrade,
np. cit., p. 39.


c) estatutos mistos: referiam-se às pessoas e às coisas (sucessões,
falências etc.). O princípio aplicável não era sempre o mesmo.


142. Doutrinas Modernas quanto à Extraterritorialidade

1. Sistema da Comunidade. de Direito - Savigny, em sua famosa
obra Sistema de Direito Romano Atual (1840-1849), sustentou a tese
de que o princípio da extratErritorialidade da lei não decorria da
simples cortesia internacional, mas fundava-se no surgimento de uma
comunidade de Direito, criação modema que unia os povos em torno
de interesses comuns e pela neessidade, sob o influxo do cristianismo ,
de se dispensar ao estrangeiro o mesmo tratamento que aos nacionais.
Os critérios de solução apontados pelojurisconsulto alemão se guiaram
pela natureza própria e essencial das relações jurídicas. Era relevante,
para ele, o fato de a pessoa se submeter voluntariamente ao império de
uma determinada lei, pela escolha do domicílio. Na hipótese de extra-
territorialidade da lei, apontava o Direito do domicílio como o mais
indicado para disciplinar a matéria.

2. Sistema da Nacionalidade ` Para os casos de aplicação do
estatuto pessoal, Mancini, em 1851, defendeu a tese de que o princípio
mais adequado seria o da nacionalidade, o jus sanguinis e não o jus
soli, justificando a afirmativa com base no argumento de que os laços
que vinculavam os indivíduos à sua pátria eram rnuito fortes e que o
próprio Estado dependia da população para existir. Assim, as pessoas
deveriam submeter-se às leis de sua nacionalidade na hipótese de
extraterritorialidade.


143. O Direito Interespacial e o Sistema Brasileiro

Apesar de haver um consenso mundial quanto aos princípios que
devem reger o problema do conflito de leis no espaço, a matéria é
regulada internamente por leis próprias de cada Estado e mediante
tratados internacionais,. A matéria é objeto de uma disciplina específica
dos cursos jurídicos: Direito Internacional Privado. Em nosso país, as
disposições referentes à eficácia da lei no espaço estão localizadas
principalmente na Lei de Introdução ao Código Civil
1 7o. A Constituição Federal, o Código Civil, Código Penal e Código de
Processo Civil estabelecem também algumas regras pertinentes à ma-
téria. Quanto ao estatuto pessoal do estrangeiro, a legislação brasileira ;
adotou, inicialmente, o princípio da naciotialidade, que vigorou até
1942, quando foi promulgada a nova Lei de Introdução. Ao alterar o
regime para a lei do dotnicilio, a exposição de motivos que acompanhou
o ato legislativojustificou a mudança, sob o fundamento de que o Brasil
era ainda um país de imigrantes e que os nossos nacionais no exterior
eram em número bem inferior ao dos estrangeiros aqui domiciliados e
que, além dessa circunstância, havia uma patente dificuldade por parte
dos juízes brasileiros em conhecerem o Direito estrangeiro, aplicável
sobretudo em questões de sucessão e de Direito de Família.
Com a alteração do princípio para o do domicílio, os estrangeiros
que aqui viviam ficaram subordinados não mais à legislação de origem,
mas ao Direito brasileiro. Lembre-se que a alteração do princípio
ocorreu em plena "Segunda Guerra Mundial", na qual o Brasil partici-
pou, juntando-se aos "aliados", no combate às forças dos "países do
eixo".
ATO ILfCITO


Sumário:189. Conceito e Elementos.190. Categorias. I91. Classificação
do Elemento Culpa. 192. Excludentes do llicito. I93. Teoria Subjetiva e
Teoria Objetiva da Responsabilidade.194. Abuso do Direito.


189. Conceito e Elementos

Ato ilícito é a conduta humana violadora da ordem jurídica. Só
pratica ato ilícito quem possui dever jurídico. A ilicitude implica
sempre a lesão a um direito pela quebra do deverjurídico. Como espécie
do gênero fato juridico, cria, modifica ou extingue relação jurídica. Em
qualquer caso gera sempre uma nova relação jurídica, em que o autor
do ilícito assume um dever jurídico de reparar a infração. O conceito
de ilícito corresponde à injúria (in ius - contra ius) dos romanos, que
era a antítese do jus. A teoria dos atos ilícitos foi obra dos pandectistas
alemães do século XIX, quando da elaboração da parte geral do Código
Civil alemão.
Para a configuração do ilícito concorrem os elementos: conduta,
antijuridicidade, imputabilidade e culpa. Os dois primeiros são os
elementos objetivos do ato e os demais, os elementos subjetivos. O
ilícito é sempre uma conduta humana, ainda que instrumentalmente a
lesão ao direito se faça pela força de um ser irracional ou por qualquer
outro meio. A antijuridicidade significa que a ação praticada é proibida
pelas normasjurídicas. A imputabilidade é a responsabilidade do agente
pela autoria do ilícito. Enquanto que na esfera criminal a conduta
antijurídica de um ménor não torna imputável o seu pai ou responsável,
o contrário se passa no âmbito civil, em face da chamada culpa in
vigilando, a ser estudada no parágrafo seguinte.

A culpa é o elemento subjetivo referente ao animus do agente ao
praticar o ato. É um elemento de ordem moral, que indica o nível de
participação da consciência na realização do evento. Culpa é um termo
análogo ou analógico, de vez que é um vocábulo que apresenta dois
sentidos afins. Emprega-se culpa em sentido amplo e em sentido estrito.
Lato sensu abrange o dolo e a culpa propriamente dita. Ato ilícito doloso
é o praticado com determinação de vontade, intencionalmente. No ato
culposo não se verifica o propósito deliberado de realização do ilícito.
A responsabilidade deriva de uma conduta imprópria do agente que,
podendo evitar a ocorrência do fato, que é previsível, não o faz.
Conscientemente não deseja o resultado, mas não impede o aconteci-
mento. A culpa pode decorrer de negligência, impericia ou imprudên-
cia. A negligência revela-se pelo descaso ou acomodação. O agente do
ato possui um dever jurídico e não toma as medidas necessárias e que
estão ao seu alcance. Na impericia, a culpa se manifesta por falhas de
natureza técnica, pela falta de conhecimento ou de habilidade. A
imprudência se caracteriza pela imoderação, pela falta de cautela; o
agente revela-se impulsivo, sem a noção de oportunidade.
A conseqüência para a prática dos atos ilícitos é a reparação dos
danos ou a sujeição a penalidades, previstas em lei ou em contrato. O
Código Civil brasileiro, no caput de seu art. 159, define ato ilícito:
"aquele que, por ação ou omissão vluntária, negligência ou imprudên-
cia, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar
o dano." Referindo-se a esta definição, Clóvis Beviláqua fez a seguinte
ilação: "Tal como resulta dos termos do art. 159, ato ilicito é a
violação do direito ou o dano causado a outrem por dolo ou culpa."'
Decompondo-se o conceito do ato ilícito, temos o seguinte qua-
dro, de acordo com a teoria das causas:
ATO ILÍCITO

CAUSA ELEMENTO CONCEPTUAL
1. Eficiente Conduta Humana
2. Material Dano ou Perigo
3. Formal Culpa (ou Risco)
4. Final Ressarcimento ou Penalidade




190. Categorias

Fundamentalmente há duas categorias de ilícito: o civil e o penal.
No primeiro o descumprimento do deverjurídico, contratual ou extra-
contratual, contraria normas de Direito Privado e tem por conseqüência
a entrega de um bem ou de uma indenização. Ocorre o ilícito penal
quando a conduta antijurídica enquadra-se em um tipo de crime defi-
nido em lei. Em face do princípio da reserva legal, não pode haver crime
e nem pena sem lei anterior. A sanção penal consiste geralmente em
uma restrição à liberdade individual ou no pagamento de multa. Entre
uma categoria e outra, Alessandro Groppali situa o ilícito administrati-
vo, que apresenta três espécies: a) ilicito disciplinar, cuja sanção pode
variar desde a repreensão até a demissão do servidor; b) ilicito de
policia, que tem como pena uma restrição à liberdade; c) ilicito fiscal,
cuja penalidade é de natureza pecuniária.2
Um critério diverso de classificação foi proposto por Planiol, com
base na regra jurídica violada. O notável jurista distinguiu os ilícitos
em três categorias: a) contra a honestidade, que são os atos que
implicam deslealdade ou improbidade do agente. Este critério, que se
guia pelos valores de ordem moral, assenta-se na máxima fraus omnia
corrumpit (fraude corrompe tudo); b).rcontra a habilidade, são aqueles
que decorrem de erros praticados no exercício da profissão, via de regra
por negligência, imperícia ou imprudência; c) contra a lei, aqueles que
não revelam desonestidade do agente, nem são praticados no exercício
profissional, mas são proibidos por lei, em face de algum interesse
social relevante.3


191. Classificação do Elemento Culpa

De acordo com o enfoque civilista analisado por Alessandro
Groppali, o elemento culpa apresenta a seguinte classificação:

1. Intensidade da Culpa - Sob este aspecto a doutrina distingue
três graus: culpa grave, leve e levíssima. Considera-se que a culpa é


grave quando o autor do ilícito falta com os cuidados adotados ampla-
mente pela sociedade, id estnon intelligere quod omnes intelligunt (isto
é, não entender o que todos entendem). O ilícito é praticado diante de
um quadro em que o simples homem do povo seria capaz de indicar a
conduta adequada. A culpa é leve quando o agente não revela a prudên-
cia comum aos homens de capacidade mediana.  levíssima quando a
conduta exigida pelas circustâncias se reveta ao alcance de uma mino-
ria, dotada de grande discernimento.

2. Conteúdo da Culpa - Quando a culpa decorre da violação de
um dever jurídico omissivo, ela se diz in faciendo. O agente não deve
praticar ato, não obstante, o realiza. Configura esta espécie a culpa do
comerciãnte que vende bebida alcoólica a menor, apesar da proibição
legal. A culpa se diz in non faciendo (ou in omittendo) quando o agente
deixa de praticar um ato a que estava obrigado. O médico que deixa de
prestar socorro a um paciente; o pai que nega assistência material ou
intelectual ao filho, incidem nesta espécie.

3. Critérios de Avaliação - O sistema jurídico pode adotar dois
critérios distintos de aferição da responsabilidade: in abstracto ou in
concreto. Pelo primeiro, a avaliação da culpa ce faz tendo em vista o
comportamento do bom pai de familia (bonus pater familias), sem I
levar-se em conta o condicionamento próprio do agente. O segundo
critério - culpa in concreto - consiste na verificação do nível de
discernimento, cultura ou aptidão da pessoa. Nas legislações modernas,
prevalece o critério da culpa in abstrato. Em alguns casos, porém, a
própria lei determina se levem em consideração as condições particu- I·
lares do agente.

4. Natureza da Relação - A culpa pode ser contratual ou extra-
contratual. Ocorre a primeira quando n agente deixa de cumprir uma
obrigaçãó assumida por um contrato. Exemplo: o ilícito in non faciendo
praticado pelo inquilino que não paga o aluguel devido. Chama-se
extracontratual a culpa que deriva do não-cumprimento de um dever
criado por regras jurídicas. Exemplo: a culpa que se origina de um
atropelamento de trânsito.


dever jurídico. Exemplo: o eleitor que não participa nas eleições.
Ocorre a culpa por fato de outrem quando o responsável pelo ato ilícito
não participa pessoalmente no evento. A sua culpa deriva de uma
omissão quanto ao controle da causa eficiente do ilícito. Apresenta três
modalidades: a) culpa in vigilando: é a responsabilidade específica dos
pais e tutores, que têm o dever de orientar e acompanhar os filhos e
pupilos; b) culpa in eligendo: é a responsabilidade dos gatrões, em
relação aos atos praticados por seus empregados; c) culpa in custodien-
do: é a responsabilidade assumida pelo dono de um animal ou de coisa
inanimada, de cuja força resulta um evento considerado ilícito. A culpa
se funda na falta de diligência do proprietário quanto ao controle e
fiscalização de seus pertences.


192. Excludentes do Ilícito

Em seu art.160, o Código Civil brasileiro apresenta três exclu-
dentes para a ilicitude: legítima defesa, exercício regular de um direito
reconhecido, estado de necessidade.

1. Legitima Defesa - Esta medida é de natureza especial e extraor-
dinária, pois o caminho natural para a defesa dos direitos é a viajudicial.
O aforismo de Bacon confirma: Lex cavet civibus magistratus legibus
(a lei protege os cidadãos; o magistrado, as leis). A atualidade ou
iminência de uma agressão injusta não comporta ou admite quaisquer
gestões. A reação moderada, a título de defesa, além de direito, é dever
moral. Quando há esbulho, por exemplo, em que o proprietário se vê
privado da posse de qualquer bem, a lei permite a reação incontinenti.
Consoante Clóvis Beviláqua, "a autodefesa destina-se a evitar o mal da
violação do direito. A auto-satisfação ou justiça particular propõe-se a
restaurar o direito, que a agressão injusta fez sucumbir".4

2. Exercicio Regular de um Direito - O direito subjetivo é para
ser exercitado. A sua utilização normal, de acordo com a sua finalidade,
não caracteriza qualquer ilícito. Assim, o proprietário que ajuíza uma
ação de despejo contra uma empresa, ao reaver o imóvel, nenhuma



responsabilidade tem quanto a eventuais prejuízos sofridos pela loca-
tária, em decorrência da paralisação temporária de atividade devido à
mudança.

3. Estado de Necessidade - Esta excludente foi definida pela lei
civil, no item II do art. 160: "a deterioração ou destruição da coisa
alheia, a fim de remover perigo iminente (arts. 1.5I9 e 1.520)." No
estado de necessidade apresenta-se um conflito entre direitos perten-
centes a titulares distintos. Para tutelar o direito próprio, alguém destrói
ou inutiliza o bem jurídico de outrem. Esta ação é ilícita apenas se não
excede os limites indispensáveis à remoção do perigo. Conforme Ma-
chado Paupério discrimina, os requisitos do estado de necessidade são
os seguintes:
"lo que exista um perigo atual e inevitável para um bem juridico
qualquer do agente ou de outrem;
2o que não tenha sido o perigo provocado voluntariamente pelo
agente;
3o que, finalmente, não se possa exigir, de maneira razoável, o
sacrifício do bem que está ameaçado, e que compense este a destruição
da coisa alheia".5


193. Teoria Subjetiva e Teoria Objetiva da Responsabilidade

l. A Responsabilidade no Passado - Nos tempos primitivos,
diante da lesão de um direito, prevalecia o princípìo da vingaç
privada. A própria vítima ou seus familiares reagiam contra o respor-
sável. Quando surgìu a chamada pena de talião, olho Dor olho, dentr
por dente, houve um progresso. Se, anteriormente, nãohavia qualquer
critério convencionado, a retribuição do mal pelo mesmo maI eszabe-
lecia a medida da reparação. Esse critério, que surgiu espontaneamenie
no meio social, chegou a ser consagrado por várias legislações, inclu-
sive pela Lei das XII Tábuas. A grande evolução na matéria ocorreu
com a composição voluntária, em que a vítima entrava em acordo com
o ìnfrator, a fim de obter uma compensação pelo dano sofrido. O resgate
(poena), que a vítima recebia, consistia em uma parcela em dinheiro ou



na entrega de um objeto. Tal critério foi institucionalizado posterior-
mente e recebeu a denominação de composição tari fada. A Lei das XII
Tábuas estabeleceu o quantum ou valor do resgate. Com a Lex Aqui-
lia,inspirada na doutrina do pretor Aquiles, ocorreu um importante
avanço quanto à composição. Além de definir mais objetivamente os
atos ilícitos, substituiu as penas fixas: o resgate deveria ser no valor
real da coisa (v. § 201 ).

2. As Teorias da Responsabilidade =' Para a teoria subjetiva,
abraçada de uma forma ampla pelo Direito brasileiro, na esteira das
grandes legislações, a culpa é essencial à caracterização do ilícito. Sem
ela, não há ilicíto, não há responsabilidade. Na esfera criminal a teoria
subjetiva é absoluta. Em face do princípio "o ônus da prova cabe a quem
alega", a vítima é quem possui o encargo de provar a culpa do infrator,
a fim de obter a reparação de seu direito. Modernamente, em face do
progresso científico e tecnológico, que transformou a sociedade em um
aparelho complexo, onde o homem convive com o perigo e ocorrem, a
cada instante, as mais variadas formas de acidente, a doutrina reconhece
a necessidade de se proteger, de um modo mais eficaz, o interesse da
vítima pelo ressarcimento. A contribuição que a doutrina e a jurispru-
dência têm dispensado ao problemaocial ejurídico consiste em alguns
processos técnicos, apontados por Alvino Lima:

"1) Na admissão, com facilidade; da existência de uma culpa.
2) No reconhecimento de presunções de culpa.
3) Na transformação da responsabilidade aquiliana em contratual.
4) Na extensão do próprio conceito de culpa.

Com a finalidade de corrigir as distorções e injustiças que decor-
rem da aplicação da teoria subjetiva, vários juristas conceberam a
responsabilidade sem culpa e traçaram os lineamentos da teoria obje-
tiva ou do risco. Os fundamentos apresentados em favor desta teoria
foram descritos, em admirável síntese, por Alvino Lima: "Partindo da
necessidade da segurança da vítima, que sofreu o dano, sem para ele
concorrer, os seus defensores sustentam que les faiseurs d `actes, nas
suas múltiplas atividades, são os criadores de riscos, na busca de



proveitos individuais. Se destas atividades colhem os seus autores todos
os proveitos, ou pelo menos agem para consegui-los, é justo e racional
que suportem os encargos, que carreguem os ônus, que respondam
pelos riscos disseminados - Ubi emolumentam, ibi onus. Não é justo,
nem racional, nem tampouco eqüitativo e humano, que a vítima, que
não colhe os proveitos da atividade criadora dos riscos e que para tais
riscos não concorreu, suporte os azares da atividade alheia."'
Apesar de prevalecer, entre nós, os critérios da teoria subjetiva, '
que fundamenta a responsabilidade no elemento culpa, a legislação
brasileira não ficou insensível às exigências dos novos tempos.
Várias leis nacionais adotam os princípios da teoria objetiva, como
a Lei no 2.681, de 1912, que: dispõe sobre o transporte de passageiros
nas estradas de ferro e a Lei de Acidente de Trabalho. =


194. Abuso do Direito

Abuso do direito é uma forma especial de prática do ilícito, que
pressupõe a existência de um direito subjetivo, o seu exercício anormal
e o dano ou mal-estar provocado às pssoas. No passado predominava
o caráter absoluto dos direitos. Os titulares poderiam utilizar seus
direitos sem quaisquer limitações, pois qui suo iure utitur neminem
laedit (quem usa de seu direito a ninguém prejudica). A figura do abuso
do direito, se não chegou a ser teorizada pelos romanos, pelo menos foi
conhecida do ponto de vista doutrinário, como se pode inferir da frase
do jurisconsulto Gaio: dlale enim nostro jure uti non debemus (não
devemos usar mal de nosso direito - Inst. I, 53).R Um caso famoso na
jurisprudência alemã e que bem caracteriza a figura do abuso do direito
passou-se no início deste século. O proprietário de uma fazenda, sob a
alegação de que sempre que se encontrava com o seu filho ocorria
altercação, impediu-lhe que penetrasse em suas terras"a fim de visitar



o túmulo de sua mãe, que lá se achava enterrada. Apesar de não
encontrar amparo na legislação, o filho recorreu à Justiça e obteve
ganho de causa, sendo-lhe garantido o direito de visitar as terras nos
dias de festa. Tal decisão, proferida em 1909, foi o grande marco para
a plena caracterização do abuso do direit`rlo ordenamento jurídico
alemão.y
No Direito moderno, o Código Civil da Prússia, de 1794, foi a
primeira legislação a proibir o exercício do direito fora dos limites
próprios."' Na França, no período que antecedeu ao Código Napoleão,
o art. 420 das Máximas Gerais do Direito francês previa o uso anti-so-
cial da propriedade: "não é permitido a qualquer pessoa fazer em sua
propriedade o que não Ihe der serventia e prejudicar a outros". O Código
Napoleão, porém, sintonizado com o pensamento individualista, não
consagrou tal princípio. No Direito brasileiro, de uma forma indireta,
o abuso do direito está previsto como ilícito. O art.160 do Código Civil,
ao indicar o "exercício regular de um direito reconhecido" como exclu-
dente do ilícito, ipso facto, de acordo com o argumento a contrario
sensu, reconhece que o exercicio não regular não é excludente e,
portanto, é um ilícito.
Alguns juristas, notadamente franceses do séc. XIX, não admitem
a figura do abuso do direito. Planiol, por exemplo, considerou que a
expressão se compõe de duas palavras antitéticas, que não se harmoni-
zam. Demolombe, cognominado o principe da exegese, foi o maior
defensor do caráter absoluto dos direitos subjetivos, não admitindo,
pois, o conceito de abuso do direito.
Atualmente a teoria do abuso do direito não apenas é reconhecida,
como também considerada indispensável à segurança social. A neces-
sidade de se proteger os interesses coletivos torna inadmissível que o
espírito de emulação ou capricho de um possuidor de direito prejudique
o bem-estar social. O direito subjetivo deve ser utilizado de acordo com
a sua destinação, com a finalidade que lhe é própria, dentro dos limites impostos pelo interesse coletivo.
FUNDAMENTOS DO DIREITO

Capítulo XXXVII

A IDÉIA DO DIREITO NATURAL




206. A Insuficiência do Direito Positivo

O motivo fundamental que canaliza o pensamento ao Direito
Natural é a permanente aspiração dejustiça que acompanha o homem.
Este, em todos os tempos e lugares, não se satisfaz apenas com a ordem
jurídica institucionalizada. O Direito Positivo, visto como expressão da
vontade do Estado, é um instrumento que tanto pode servir à causa do
gênero humano, como pode consagrar os valores negativos que impe-
dem o pleno desenvolvimento da pessoa. Por inclinação, ao questionar
o Direito Positivo vigente, o homem busca, em seu próprio sentimento
dejustiça e de acordo com a sua visão sobre a ordetn natctral dascoisns,
encontrar a legitimidade das normas que lhe são impostas. O contrário,
a atitude acrítica, seria a admissão de que não existe, para o legislador,


qualquer limite ou condicionamento na tarefa de estruturar a ordem
jurídica.
A idéia do Direito Natural é o eixo em torno do qual gira toda a
Filosofia do Direito. O jusfilósofo ou é partidário dessa idéia ou é
defensor de um monismo jurídico, visão que reduz o Direito apenas à
ordem jurídica positiva. Conforme expõe Benjamin de Oliveira Filho,
há dois posicionamentos básicos, a rigor, na Filosofia do Direito: o do
positivismo jurídico, que é uma concepção relativista do Direito, e o da
velha Escola do Direito Natural. O mais, diz o eminente autor, "não
passa de tentativas efêmeras de inovação, logo apagadas no curso do
tempo".'
Chama-se jusnaturalismo a corrente de pensamento que reúne
todas as idéias que surgiram, no correr dá história, em torno do Direito
Natural, sob diferentes orientações. Durante esse longo tempo, o Direi-
to Natural passou por altos e baixos, por fases de grande prestígio e por
períodos críticos. Na metade do atual século, após ter enfrentado um
rigoroso inverno, causado pelos ventos frios do positivismo e devido
também aos excessos de seus próprios adeptos, reacendeu, no espírito
dos juristas, o entusiasmo pelo Direito Natural, que hoje se encontra no
apogeu, na fase que a História da Filosofia do Direito registra como a
de seu renascimento.
A corrente jusnaturalista não se tem apresentado, no curso da
história, com uniformidade de pensamento. Há diversos matizes, que
implicam a existência de correntes distintas, mas que guardam entre si
um denominador comum de pensamento: a convicção de que, além do
Direito escrito, há uma outra ordem, superior àquela e que é a expressão
do Direito justo. É a idéia do Direito perfeito e por isso deve servir de
modelo para o legislador. É o Direito ideal, mas ideal não no sentido
utópico, mas um ideal alcançável. A divergência maior na conceituação
do Direito Natural está centralizada na origem e fundamentação desse
Direito. Para o estoicismo helênico, localizava-se na n`atureza cósmica.
No pensamento teológico medieval, o Direito Natural seria a expressão
da vontade divina. Para outros, se fundamenta apenas na razão. O
pensamento predominante na atualidade é o de que o Direito Natural
se fundamenta na natureza humana.
O prestígio que o pensamento jusnaturalista realcançou, no atual
século e mais notadamente nas últimas décadas, promoveu o retorno



dos jusfilósofos ao antiqüíssimo tema, com a apresentação de variados
estudos e de novas obras, que se incorporaram a essa imensa corrente
de pensamento, que começou a se formar a partir das reflexões de
Heráclito, no século VI a.C. Da filosofia helênica até o presente, a idéia
do Direito Natural não deixou de ser cultivada e por este motivo as
opiniões e literatura que a envolvem são vastíssimas.
O antiqüíssimo Livro dos Mortos, do Egito Antigo, revela as
preocupações daquele povo em relação aos critérios dejustiça e que os
egípcios consideravam o Direito como manifestação da vontade divina.
0 morto, segundo aquele registro, comparecia ao Tribunal de. Osíris,
ante a deusa Maat, cujo nome significava lei, ordem que governava o
mundo, e que segurava em uma das mãos um cetro e na outra o coração,
símbolo da vida. O morto devia, para alcançar a felicidade supraterrena,
conforme relata Victor Cathrein, dizer a oração dos mortos, em sua
defesa: "Eu não matei, nem causei prejuízo a ninguém. Não escandali-
zei no lugar da justiça. Não sabia mentir. Não fiz mal. Não obriguei,
como superior, a trabalhar para mim durante todo o dia os meus criados.
Não maltratei os escravos por ser superior a eles. Não os abandonei na
fome. Não lhes fiz chorar. Não matei. Não ordenei matar. Não rompi o
matrimônio. Não fui impudico. Não esbanjava. Não diminuí nos grãos.
Não rebaixava nas medidas. Não allerava os limites do campo etc."2
Na literatura grega, o diálogo de Antígona com o rei Creonte, na
terceira tragédia da trilogia de Sófocles (494-406 a.C.), expressa, de
forma inequívoca, a crença no Direito Natural e a sua superioridade em
relação ao Direito temporal. Creonte havia determinado que Polinice,
morto em uma batalha, não fosse sepultado, com o que Antígona, sua
irmã, rebelando-se contra a ordem do tirano, disse-Ihe: "... tuas ordens
não valem mais do que as leis não-escritas e imutáveis dos deuses, que
não são de hoje e nem de ontem e ninguém sabe quando nasceram."


207. Conceito

O raciocínio que nos condtz à idéia do Direito Natural parte do
pressuposto de que todo ser é dotado de uma natureza e de um fini. A



natureza, ou seja, as propriedades que compõem o ser, define o fim a
que este tende a realizar. Para que as potências ativas do homem se
transformem em ato e com isto ele desenvolva, com inteligência, o seu
papel na ordem geral das coisas, é indispensável que a sociedade se
organize com mecanismos de proteção à natureza humana. Esta se
revela, assim, como a grande condicionante do Direito Positivo. O
adjetivo natural, agregado à palavra direito, indica que a ordem de
princípios não é criada pelo homem e que expressa algo espontâneo,
revelado pela própria natureza. A presente colocação decorre da simples
observação de fatos concretos que envolvem o homem e não de meras
abstrações ou dogmatismos. A premissa básica de nosso raciocínio, com
toda evidência, se revela verdadeira. Conforme asseverou Max Weber,
"não existe ciência inteiramente isenta de pressupostos e ciência alguma
tem condição de provar seu valor a quem lhe rejeite os pressupostos".;
Com outras palavras, Jacques Leclercq fez a mesma afirmação: "Sem
admitir determinadas evidências, não é possível viver."'
A idéia do Direito Natural tem sido apresentada em dois níveis:
como ontologia e como deontologia. Os jusnaturalistas que defendem
o Direito Natural ontológico admitem o Direito Natural como ser do
Direito, como o legítimo Direito. Os jusfilósofos partidários do Direito
Natural deontológico representam essg Direito apenas como um conjunto
de valores imutáveis e universais, mais identificado com a Ética. Confor-
me salienta Elías Díaz, a primeira fórmula engloba a segunda.5
Como destinatário do Direito Natural, o legislador deve ser, ao
mesmo tempo, um observador dos fatos sociais e um analista da
natureza humana. Para que as leis e os códìgos atinjam a realização da
justiça - causa final do Direito - é indispensável que se apóiem nos
princípios do Dtreito Natural. A partir do momento em que o legislador ..
se desvincular da ordem natural, estará instaurando tma ordemjurídica
ilegítima. O divórcio entre o Direito Positivo e o Natural cria as
chamadas leis injustas, qLie negam ao homem o que lhe é devido.



208. Origem e Via Cognoscitiva


A origem do Direito Natural se localiza no próprio homem, em
sua dimensão social, e o seu conhecimento se faz pela conjugação da
experiência com a razão. É observando a natureza humana, verificando
o que lhe é peculiar e essencial, que a razão induz aos princípios do
Direito Natural. Durante muito tempo o pensamento jusnaturalista
esteve mergulhado na Religião e concebido como de origem divina.
Assim aceito, o Direito Natural seria uma revelação feita por Deus aos
homens. Coube ao jurisconsulto holandês, Hugo Grócio, considerado
"o pai do Direito Natural", promover a laicização desse Direito. A sua
famosa frase ressoa até os dias atuais: "O Direito Natural existiria
mesmo que Deus não existisse ou que, existindo, não cuidasse dos
assuntos humanos."
Infelizmente, uma falsa compreensão leva alguns juristas, ainda
hoje, a um visível preconceito em relação ao Direito Natural, julgan-
do-o idéia metafísica ou de fundo religioso. É indiscutível que se
levarmos em consideração que a ordem natural das coisas foi estabele-
cida pelo Criador, este, em última análise, seria o autor do Direito
Natural. Contudo, a ordem de racioeínio mais recomendável é a de se
partir diretamente da idéia que envolve a natureza humana e o fim a
que tende realizar.


209. Caracteres

O jusnaturalismo atual concebe o Direito Natural apenas como
um conjunto de amplos princípios, a partir dos quais o legislador deverá
compor a ordem jurídica. Os princípios mais apontados referem-se ao
direito à vida, à liberdade, à participação na vida social, à união entre
os seres para a criação da prole, à igualdade de oportunidades. O
chamado direito naturnl nonnativo, erro do séc. XVIII, que pretendeu,
more geonietrico estabelecer códigos de Direito Natural, é idéia intei-
ramente abandonada.
Tradicionalmente os autores indicam três caracteres para o Direito
Natural: ser eterno, imutável e universal; isto porque, sendo a natureza
humana a grande fonte desses Direitos, ela é, fundamentalmente, a
mesma em todos os tempos e lugares.


Em sua obra ué queda del Derecho Natural?, o jurista chileno
Eduardo Novoa Monreal apresenta um elenGo bem mais amplo de
caracteres, onde enumera:1 ) universalidade (comum a todos os povos);
2) perpetuidade (válido para todas as épocas); 3) imutabilidade (da
mesma forma que a natureza humana, o Direito Natural não se modi-
fica); 4) indispensabilidade (é um direito irrenunciável); 5) indelebili-
dade (no sentido que não podem os direitos naturais ser esquecidos pelo
coração e consciência dos homens); 6) unidade (porque é igual para
todos os homens); 7) obrigatoriedade (deve ser obedecido por todos
os homens); 8) necessidade (nenhuma sociedade pode viver sem o
Direito Natural); 9) validez (seus princípios são válidos e podem ser
impostos aos homens em qualquer situação em que se encontrem).6


210. A Escola do Direito Natural

Enquanto que por jusnaturalismo entende-se a imensa corrente de
juristas-filósofos que consagram aqueles princípios de proteção à dig-
nidade do homem, a chamada Escola do Direito Natural compreende
apenas a fase racionalista, vigente,entre os séculos XVI e XVIII, e que
teve como corifeus Hugo Grócio, Hobbes, Spinoza, Puffendorf, Wolf,
Rousseau e Kant.. A doutrina desenvolvida pela Escola, conforme
estudo de Ruiz Moreno, apresenta os seguintes pontos básicos: a
natureza humana como fundamento do Direito; o estado de natureza
como suposto racional para explicar a sociedade; o contrato social e os
direitos naturais inatos.'
Os caracteres fundamentais da Escola, segundo Luno Pena, foram
os seguintes: racionalista no método; subjetivista no critério; anti-his-
tórica nas exigências e humanitária no conteúdo.R
Esta Escola deixou-se influenciar fortemente pela filosofia racio-
nalista e pretendeu, more geometrico, formar códigos de Direito Natu-
ral. Concebeu este Direito como eterno, imutável e universai, não



apenas nos princípios, mas igualmente em sua aplicação prática. A
grande virtude da Escola foi a de considerar a natureza humana como
a grande fonte do Direito.



211. Revolucionário ou Conservador?

Os partidários da idéia do Direito Natural têm a consciência de
que os princípios que expressam os valores essenciais de proteção ao
homem formam uma ordem apta a legitimar o Direito Positivo. Na
medida em que o Estado dispõe de estatutos legais que ferem os direitos
do homem, osjusnaturalistas recusam a legitimidade dessa ordem. Com
base no Direito Natural, levantam uma bandeira de reivindicação, no
sentido de colocar o Direito Positivo em harmonia com a ordem natural.
0 jusnaturalismo revela-se, assim, como um meio ou instrumento a
atacar todas as formas de totalitarismo. E é por este motivo, como
lembra Jacques Leclercq, que "os governantes não gostam de ouvir
falar de Direito Natural, porque este só é invocado para se Ihes opor
resistência".9
Para a deflagração da Revolução Francesa, o pensamento jusna-
turalista colaborou de forma decisiva. Em nome do Direito Natural
foram condenadas as velhas instituições francesas, que se revelaram
impróprias aos ideais de justiça social. O homo juridicus que se iden-
tifica com o valor justiça não se acomoda diante das opressões e
desigualdades. Luta em favor de uma ordem legítima; combate as
distorções sociais; clama pela efetiva proteção à vida e à liberdade. Se
necessário, lança-se ao recurso extremo: a revolução.
Se a idéia do Direito Natural é útil no processo de aperfeiçoamento
das instituições jurídicas, pode, em contrapartida, falsamente ser utili-
zada como instrumento de conservação de uma ordem jurídica injusta
e ilegítima, por força de manobras de quem detém o poder. Ojusfilósofo
espanhol Elías Díaz denuncia o regime de seu país pela utilização dessa
ideologia jurídica: "Aqueles grandes e sacrossantos principios - de-
fendidos pelos jusnaturalistas espanhóis - têm sido os utilizados nesse
largo e negro período como ideologia reacionária para sua incorporação



à legislação, à prática política ou à administração e aplicação do
Direito.""'
A esta altura cumpre uma distinção necessária. Não se pode acusar
o Direito Natural de servir de base aos regimes injustos. A falsa
definição dos direitos naturais, os sofismas, os artifícios de toda ordem,
sim, é que podem desempenhar esse papel desastroso. A execução
dessa prática, contudo, é a própria negação do Direito Natural; é a
postergação dos princípios que orientam a ordem natural das coisas, é
o anti-direito, é a ilegitimidade.


212. Crítica

A crítica ao Direito Natural se divide em dois níveis: a dos que se
opõem ao substantivo "Direitn" e a dos que atacam o adjetivo "Natural".
A oposição ao substantivo visa t contestar a concepção do Direito
Natural ontológico, segundo a qual esta ordem expressa o ser do
Direito. A crítica ao adjetivo é propriamente ao Direito Natural deon-
tológico e tem a finalidade de negar qualquer tipo de influência e de
importância ao jusnaturalismo, reciÇsando-lhe até a condição de valor
ético. Entre os opositores à idéia do Direito Natural ontológico encon-
tram-se críticos que adrnitem o Direito Natural deontológico, como
Perelman, Passerin d'Entreves, Bertrand de Jouvenal e Prelot.
Durante o século XIX, o positivismo de inspiração comtiana
alcançou ampla repercussão no âmbito do Direito, colocando-se em
posição antagônica ao jusnaturalismo. A partir daí, estabeleceu-se a
maior e definitiva cisão na área da Filosofia do Direito, porque, enquan-
to o jusnaturalismo preconizava uma outra ordem jurídica além da
estabelecida pelo Estado, o positivismo reconhecia como Direito
apenas o positivo. O positivismo surgiu em uma fase difícil e
crítica na história do Direito Natural, quando o jusnaturalismo se
encontrava comprometido pelos excessos da chamada Escola do
Direito Natural.
A mensagem que o positivismo trazia para a ciência, de se
valorizarem apenas os fatos concretos, a realidade observável e a
conseqüente rejeição.de todos elementos abstratos, encontrou recepti-



vidade entre os juristas e filósofos do Direito, incompatibüizados com
o abstracionismo e a metafísica da Escola do Direito Natural. O Direito
Natural, em suas diferentes manifestações, é negado pelo positivismo,
por considerá-lo idéia metafísica. Como método de pesquisa e de
construção, o positivismo só admite como válido o método indutivo,
que se baseia nos fatos da experiência, recusando valor científico ao
método dedutivo, por julgá-lo dogmático.
O conflito entre a Escola Histórica do Direito e ojusnaturalismo é
mais aparentè do que real. Os pontos de discordância localizam-se nas
características de universalidade e imutabilidade, apresentadas pelo Direi-
to Natural. Para o historicismo, o Direito é um produto da história e, como
tal, vive em permanente transformação. Diante de tais colocações se
afigura irremediável o dissídio entce as duas correntes de pensamento. A
conciliação contudo, além de possível é necessária e indispensável.
A moderna concepção jusnaturalista reconhece o Direito Natural
como conjunto de princípios e não mais um Direito Natural normativo
e sistematizador. Se em deterrninado período o antagonismo existente
entre o Direito Natural e o historicismo jurídico se mostrava absoluto
e inconciliável, na visão atual do jusnaturalismo há evidentes pontos
de contato entre ambos. Se de um lado o jusnaturalismo se distancia do
historicismo por admitir princípios eernos, imutáveis e universais, de
outro dele se Iproxima, ao reconhecer que tais princípios, em contato
com a realidade existencial, se adaptam em conformidade com a
variação do tempo e do espaço, sem perder a sua essência. A função
moderna do Direito Natural é a de traçar as. linhas dominantes de
proteção ao ho imem, para que este tenha as condições básicas para
realizar todo o seu potencial para o bem. O direito de liberdade, por
exemplo, se de um lado possui um substrato comum e invariável em
todos os povos, de outro, sofre a influência do momento histórico,
condicionado o seu modelo concreto aos fatos da época e do lugar. Há
quase uin século o alemão Eugen Ehrlich abordou aspectos de conver-
gência entre o pensamento jusnaturalista e a concepção histórica do
Direito: "Ambos têm em comum a recusa de aceitar cegamente como
Direito tudo Iquilo que o Estado Ihes apresenta como tal; procuram
chegar à essência do Direito por via científica. E ambos localizam a
origem do Direito fora do Estado: os primeiros na natureza hurnana, os
outros no sentimento de justiça do povo.""




vidade entre os juristas e filósofos do Direito, incompatibüizados com
o abstracionismo e a metafísica da Escola do Direito Natural. O Direito
Natural, em suas diferentes manifestações, é negado pelo positivismo,
por considerá-lo idéia metafísica. Como método de pesquisa e de
construção, o positivismo só admite como válido o método indutivo,
que se baseia nos fatos da experiência, recusando valor científico ao
método dedutivo, porjulgá-lo dogmático.
O conflito entre a Escola Histórica do Direito e ojusnaturalismo é
mais aparenté do que real. Os pontos de discordância localizam-se nas
características de universalidade e imutabilidade, apresentadas pelo Direi-
to Natural. Para o historicismo, o Direito é um produto da história e, como
tal, vive em permanente transformação. Diante de tais colocações se
afigura irremediável o dissídio entre as duas correntes de pensamento. A
conciliação contudo, além de possível é necessária e indispensável.
A moderna concepção jusnaturalista reconhece o Direito Natural
como conjunto de princípios e não mais um Direito Natural normativo
e sistematizador. Se em deterrninado período o antagonismo existente
entre o Direito Natural e o historicismo jurídico se mostrava absoluto
e inconciliável, na visão atual do jusnaturalismo há evidentes pontos
de contato entre ambos. Se de um lado ojusnaturalismo se distancia do
historicismo por admitir princípios eternos, imutáveis e universais, de
outro dele se aproxima, ao reconhecer que tais princípios, em contato
com a realidade existencial, se adaptam em conformidade com a
variação do tempo e do espaço, sem perder a sua essência. A função
rnoderna do Direito Natural é a de traçar as linhas dominantes de
proteção ao honem, para due este tenha as condições básicas para
realizar todo o seu potencial para o bem. O direito de liberdade, por
exemplo, se de um lado possui um substrato comum e invariável em
todos os povos, de outro, sofre a influência do momento histórico,
condicionado o seu modelo concreto aos fatos da época e do lugar. Há
quase uin século o alemão Eugen Ehrlich abordou aspectos de conver-
gência entre o pensamento jusnaturalista e a concepção histórica do
Direito: "Ambos têm em comum a recusa de aceitar cegamente como
Direito tudo aquilo que o Estado lhes apresenta como tal; procuram
chegar à essência do Direito por via científica. E ambos localizam a
origem do Direito fora do Estado: os primeiros na natureza hurnana, os
outros no sentimento de justiça do povo.""




Conforme acentua Del Vecchio, o Direito não possui apenas um
conteúdo nacional, possui também um conteúdo humano. Com isto o
jusfilósofo italiano indica que no Direito estão sempre presentes ele-
mentos universais (conteúdo humano) e elementos históricos (conteú-
do nacional). Em Miguel Reale encontramos uma lúcida visão da
convivência harmônica entre o jusnaturalismo moderno e o historicis-
mo moderado, dentro da mesma perspectiva apresentada pelo mestre
de Bolonha: "Temos a convicção de que, apesar das incessantes muta-
ções históricas operadas na vida do Direito, há, todavia, um núcleo
resistente, uma "constante axiológica do Direito", a salvo de transfor-
mações políticas, técnicas ou econômicas."'z
A proposta de um "Direito Natural de conteúdo variável", apre-
sentada por Stammler, na Alemanha, e a do "Direito Natural de con-
teúdo progressivo", fórmula substitutiva sugerida por Renard, na Fran-
ça, nesta centúria, revelam uma preocupação da corrente jusnaturalista
em conciliar os princípios do Direito Natural com as transformações
que se operam na vida social. Em nosso país, Clóvis Beviláqua chegou
a admitir a concepção de Stammler, por considerá-la compatível com
o empirismo.


213. Os Direitos do Homem e o Direito Natural

Apesar de abrangente, a expressão Direitos do Homem é empre-
gada como referência ao conjunto de normas e princípios enunciados
sob a forma de declarações, por organismos internacionais, dentro do
propósito de despertar consciência dos povos e governantes quanto
à necessidade de esses se organizarem internamente a partir da
preservação dos valores fundamentais de garantia e proteção ao
homem.
Tais normas e princípios não decorrem de simples convenciona-
lismo, fruto do acaso ou contingências, mas se apresentam sob emba-
samento filosófico sólido e calcado em milênios de experiência do
homem sóbre o homem. Os Direitos do Homem estabelecem parâme-
tros básicos, estruturais, e formam um núcleo de condições essenciais
ao relacionamento dos homens entre si e com o Estado. O Direito
Natural e os Direitos do Homem, apesar de participarem de igual faixa



ontológica e cultivarem idênticos vzlores, são conceitos que não se
confundem. Enquanto o Direito Natural pesquisa a natureza humana e
dela extrai os princípios modelares do Direito Positivo, os Direitos do
Homem se desprendem do Direito Natural, com o qual se vinculam
umbilicalmente, para apresentarem, de uma forma menos abstrata,
aqueles princípios já transformados em normas básicas.
Não há como se confundir, também, os Direitos do Homem com
o chamado Direito Natural normativo, do século XVIII, porque, en-
quanto este pretendeu codificar toda a ordem natural ligada aos atos
humanos e era obra isolada de pensadores, aqueles apresentam um
elenco reduzido e geral de normas, que encontram expressão no con-
senso dos representantes de muitos povos, reunidos em assembléias.
Também é necessário que não se cometa o equívoco de se identificarem
as declarações como o ser dos Direitos do Homem. As declarações,
como obra humana, podem não assimilar, com perfeição, as lições que
a natureza positiva das'coisas oferece. As declarações podem apresen-
tar falhas tanto pela inclusão como pela exclusão de normas ou princí-
pios essenciais.
Apesar de reconhecermos uma fixidez nos Direitos do Homem,
no tocante aos seus princípios mais gerais e abstratos, admitimos, por
outro lado, analogamente à concepço de Renard em relação ao Direito
Natural, os Direitos do Homem de conteúdo progressivo, como forma
de atender, historicamente, às novas exigências de proteção fundamen-tal à pessoa humana, geradas pelo desenvolvimento cìentífico e ético.